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RAFAEL MANTOVANI
Rafael Mantovani formou-se em Linguística pela USP e trabalha como tradutor. Teve poemas publicados em diversas revistas.
MANTOVANI, Rafael. Cão. São Paulo: Hedra, 2011. 110 p. 15x21 cm. ISBN 978-85-7715-248-3 Capa: Pati Bertucci. “ Rafael Mantovani “ Ex. bibl. Antonio Miranda
cavalo
dormindo à tarde faço um sonho estranho:
eu sou minha mãe, e visito
a casa onde ela nasceu
é um domingo conciso
económico para as lâmpadas
que não acenderam ainda
apesar das outras no Imirim
(os cachorros da rua
e os das casas
latem juntos)
com as pernas da minha mãe eu subo
com as mãos dela empurro a porta
meu avô me beija, deixa no tapete
um jornal escuro de notícias estrangeiras
minha avó, sem saber que já são horas
prolonga uma sesta inocente
e perigosa
a toalha limpa da mesa
a tábua de passar roupa
o telefone, meu tio —
tudo ao alcance da mão
parece vidas distante
o visitante perdido
e só agora encontrado
minha mãe estendo o braço
o móvel está sem abajur
abro a janela, a gaveta
do lado esquerdo procuro
o fio do ferro? um funil?
uma tesoura? um cabelo?
mas um barulho uma luz
(fraca que nem sei onde)
atravessa o corredor
(copos na copa vizinha)
atira um brilho espelhado
no espelho da cristaleira
e o rosto da minha mãe
brilha na cidade inteira
e brilha também no meu quarto
onde eu já estou acordado.
Coltrane
1.
um grito de Pedra
Hipólito um grego
o ator na porta
perguntou meu telefone não consegui responder
quem já esteve na rua nunca mais
está de volta em casa
a casa deixa de ser sua casa depois de você ter ido à rua.
2.
a caixa do disco em ordem alfabética
sempre verbete
na fonética estante
(eu não conhecia apreço por
bigodes de gato
nem embrulhos pardos presos com barbante)
(eu não conhecia o voo
solto do ganso à lua
nem a chaleira de cobre, as luvas quentes de inverno)
eu não tinha coisas favoritas —
não tinha nenhum gosto, só
uma coleção de gestos.
ISSO
se for mesmo tudo
em vão
(digo, se tudo é vaidade)
quero o vão onde eu encaixe
ou seja:
o seu
aguento enquanto
posso, protelo a
dissipação
pois só você
(amor) é meu
perfeito desperdício
sempre tive forças
pra passar
pro outro
lado (não
espero
mais que isso)
pena que é tão difícil
(e eis o
desespero)
preso entre o ser e as coisas
encontrar
o orifício.
Página publicada em julho de 2014
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