Retrato de Peixoto Gomide
por Almeida Júnior.
Acervo da Pinacoteca do Estado, São Paulo.
PEIXOTO GOMIDE
(1849-1896)
Francisco de Assis Peixoto Gomide (São Paulo, 24 de março de 1849 — São Paulo, 20 de janeiro de 1906) foi um advogado, professor e político brasileiro.
Ocupou diversos cargos eletivos e foi presidente interino do estado de São Paulo, de 31 de outubro de 1897 a 10 de novembro de 1898, com o impedimento de Campos Sales, em campanha para a Presidência da República. Passou o cargo ao novo presidente eleito do estado, o coronel Fernando Prestes de Albuquerque.
Em 1906, envolveu-se numa tragédia familiar, matando sua filha com um tiro no peito e se suicidando a seguir, com um tiro na cabeça. O ato desesperado foi provocado pela sua oposição radical ao relacionamento da filha, Sofia, com o poeta e promotor público Manuel Baptista Cepelos (1872-1915)1 .
GOMIDE, Peixoto. O pintor. São Paulo: 1928. 16 p. 11m5x16 cm. Col. Bibl. Antonio Miranda
I
De um facto sei, horrífico e tristonho:
E uma historia magoada mas sincera
De artista que morrera peio sonho;
Era um pintor, em plena primavera,
Que, batido dos franzes deste mundo,
Se abadonára a voga da chimera.
Habitava um quarto escuro e immundo,
Como o covil dos panas e ciganos
E as pocilgas do mouro vagabundo.
O seu traje de envelhecidos pannos
Compungia a alma simples dos poetas
E narseava os grandes soberanos.
Mas, clausurando em si magoas secretas,
Sustentava da sorte o golpe adverso
Com a calma augusta e meiga dos ascetas.
Nunca dissera mal deste Universo,
Cuja attração, vil iman da desgraça,
O teve, sempre, na torpeza immerso.
E como um luctador que erguendo a maça,
Vae ao combate de viseira erguida,
Qual os seus ancestraes de altiva raça,
Começava com o dia a mesma lida:
Quadrinhos que vendia no mercado
E nem davam o pouco da comida.
Infeliz, já no vácuo, e, torturado,
Nos esquadrões fataes que n dor comporta,
Alistou-se no posto de soldado.
Constante era a miséria á sua porta...
E, a natureza por autagonismo
Fel-o pintor de natureza morta!
E entre a carne e o ideal, num tantalismo,
Ao estômago venceu, por fim, a idéa,
Mas lhe rasgando os penetraes do abysmo!
Chegou-lhe o mal a altura da epopéa,
Pois, em si, batalhavam todo o dia
A fome e o sonho: Lernia e Galatéa!
Com o dinheiro mesquinho, conseguia
Comprar originaes de fructos raros,
Com que alentava a sua fantasia.
Olvidando os cruéis dias amaros
Da alma as intimas luctas afogava
Contemplando-os feliz, de olhos avaros.
Somnambulo, esquecia, de repente
Que o seu sonho era sonho funerário,
Sino a dobrar, melancolicamente;
Na transfiguração do seu calvário
Tinha a bondade santa e nazarena,
De Christo olhando a face do sicário;
O negro quarto, fétida genena,
Semelhava-lhe então reino de fada,
Exhalando um perfume de açucena,
Sua veste nojenta e remendada
Tinha o fulgor das vestes da nobreza
E era toda, de purpura chromada!
II
Mas a febre chegava e a morbideza:
Que essa gloria não ha mesmo quem góse,,
De ter domado a própria natureza:
Avolumando o soffrimento a dose
Trouxe-lhe na mensagem de um escarro
A famulenta e má tuberculose.
Começou-lhe a esvair lhe o humano barro,
No sangue que deitava pela bocca,
Como a espiral que fuma de um cigarro.
A voz se lhe tornou pausada e rouca...
E esguio e adunco e macilento e exangue
Tinha a caixa toraxcica toda ôca.
A luz do rosto emmagrecido e langue,
Scintillava, num brilho merencório,
O nariz, como o bico de um alfange.
Mas, em si, frio túmulo marmóreo,
Muitas vezes, o cérebro, a lembrança,
Trazia, de hontem o seu viver inglório:
Vinham-lhe, então os tempos de criança.
Da memória, no espelho crystallino,
Reflectia-se o prisma da abastança;
Depois... porque dízel-o? Era o destino
Quem lhe trazia a sã realidade,
Sua fome lendária, de Ugolino.
E ao brilho da tristíssima verdade,
Eis que se vê mendigo pela rua
As mãos expondo a humana caridade!
Oh, como a vida era medonha e crua!
Sentir feril-o a Cólera Suprema,
Qual ponta aguda de uma espada nua!
Jamais resolveria o seu problema,
Num tão infecto cafre de miasmas,
Com a aspiração domada numa algema.
III
Mas, que importava? ao reino dos phantasmas,
Em breve chegaria ás mudas plagas,
Para dar seiva a novos photoplasmas.
E assim synthetisou cousas preságas:
O cemitério, alem, cheio de cruzes
Mas o pulmão sangrando aberto em chagas!
Ia morrer. Que o século das luzes
Negava o pão a um miserando artista,
Que nunca fez torpedos nem obuzes!
Morreria na sede da conquista...
Também assim, morrera Cruz e Souza,
O mavioso troveiro symbolista!
Sabia a gloria em que o viver repousa:
Depois de mortos, os homens da "Gazeta",
(Ao falarem de quem se foi á lousa)
Haviam de escrever: "È mais um poeta,
Que da existência ainda no proemio,
Abandonara a fantasia inquieta.
Elle era talentoso mas bohemio,
E quem a vida leva em desvarios
Somente a morte pode ser-lhe prémio
Esquecendo, contudo, os seus desvios,
Lamentavam a perda, que á pintura
Inflingiram destinos maus e impios.
Choravam, não a immunda creatura
Mas, o pintor meiguissimo e sublime,
Que tão moço baixara á sepultura".
E isto dizendo, comettiam um crime:
De imprimindo-lhe, á vez primeira, o nome,
Tratarem de leão quem era um vime.
Certo despresaria esse renome...
Em breve, ia morrer tuberculoso,
Sim, porque padecera muita fome.
Não fora o lupanar frio e pestoso,
Quem, nevoeiros, ergueu, no seu trajecto,
Tornando lhe o verão inverno umbroso.
Fora o governo com o burguez abjecto;
Que, á sanha de abater, ferrenho obumbra
Dos pequenos, hostil, todo o projecto;
Que, vampiro, tem ódio ao que deslumbra.
E amando mais ao joio do que ao trigo,
De continuo, põe este na penumbra.
IV
Deste modo pensando a sós consigo
Ouviu bater lhe á porta. "Que coveiro
Vem perturbar .a paz de meu jazigo!''
Perguntara de dentro, sobranceiro.
''È um homem que vem ver-te, amado filho”,
Respondera o de fora, prazenteiro.
Que entre. Mas, transitar por esse trilho
Declaro, antes, que é ter péssimo gosto,
Dissera o sonhador, como estribilho.
Foi quando viu lhe apparecer o rosto,
Rugado pêlos sulcos da velhice,
.Tal como a terra os tem no mez de agosto.
Era um sem tio. E mesmo quem o visse
Lembrar-se-ia de algum negociante,
Affeito ao mando, ao ouro e a rabugice.
Envergava um trajar muito elegante
E tinha a destra, ao mais pequeno dedo,
Caros anneis com pedras de brilhante.
Circunvagando o olhar um pouco a medo,,
Naquelle catre cheio de de meseria,
Achou-se o velho como num degredo,
Então disse: "atmosphéra deletéria
Do teu albergue, filho, é quem propina
O veneno que te lavra a materia;
Deixa esta casa podre e pequenina!
Olha que essa mania desgraçada
Foi o alvião que abriu tua ruína!
Partamos quero vêl-a abandonada!
E não leves pincéis nem mesmo tinta,
Que instrumentos nem são de gente honrada!
Delia, fujamos, qual de cousa extincta,
Que hás de engordar ao murmuro marulho
Do verde mar, que banha a minha quinta".
No entanto o moço, inflado pelo orgulho
Levantou-se afinal da torpe enxerga,
Bello como os heróes de dous de Julho.
Assim falou: "O morbus me posterga;
Mas, se acaso è vencida a minha argilla
O ideal de um poeta ninguém verga!
Senhor, odeio as vozes de Sybilla;
Esta mansão de dor eu amo tanto,
Como Sansão a trefega Dalila!
Delia não me arreceio nem me espanto,
Pois é minha ternissima consorte
E a frieza que eu sinto é de seu pranto!
É bem a sua igual a minha sorte;
Já não é cedo para desprezal-a,
Hoje, que estou no limiar da morte!
Esta, cheia de nódoas, triste eala
E quem me abranda golpes de revezes
E para mim tem o fulgor da opala.
Tenho mesmo pensado muitas vezes,
(Neste curto período de conversa)
Que um artista não vive com burguezes."
V
Aqui; sentindo a bocca em sangue immersa
(Era a morte qne os membros enregela)
Ergueu-se e foi, domando a sanha adversa,
Morrer beijando a derradeira tela!
S. Paulo, 18 de Out. de 1928
Página publicada em abril de 2014
|