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PEDRO MARQUES

Clusters
São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.  71 p.  
ISBN 978-85-7480-522-1

Resenha e seleção de poemas,
por ANTONIO MIRANDA

 

            Sempre entendi cluster como um coletivo formado por forças convergentes em razão de alguma causalidade.  Venho da  Ciência da Informação e sempre acreditei que as leis que regem a informação na sociedade em geral, assim como no universo como um todo, também atuam no processo criativo e (também) na poesia. As palavras se aglomeram, vêm durante a formulação do texto (linear ou não), numa situação específica, irrepetível. Um poema acontece em tais circunstâncias. Um poeta está imerso nesta criação fractal, amalgamando um vocabulário comum para expressar-se sobre um algo que vai ser compartilhado, mesmo quando pense que não escreve para ninguém... O poeta, como o cientista, qualquer criador, é um ser plural, um porta-voz que ousa expressar-se enquanto tal. Um poema é um acontecimento histórico.

         A diferença é que alguns se entendem num processo de inscrição a partir do que vivenciam, outros — e cada vez mais criadores nesta linha de produção — preferem reinterpretar, ou mesmo inventar as situações. Trata-se de uma opção. Ser naturalista ou ser um criador de situações novas. Sugerir em vez de descrever, referir-se a fatos concretos ou imaginários.

         Por exemplo, Konstantinos Kavafis reinterpretou a trajetória humana em seu poema sobre a chegada dos bárbaros. Helênico, em tempos modernos, entre os fundamentalismos muçulmano e cristão em sua Alexandria, dava seu testemunho . " [À espera real dos bárbaros]", de Pedro Marques,  também parte de uma experiência de mundo, mas se projeta em situações bem mais fluídas, menos datadas e localizadas. "Eles chegam de todos os lados", no diz, como a dizer que todos vivemos nesta situação.  "Principalmente pelo céu e pelas mercadorias/ que não temos". Condição aberta para uma interpretação livre, irrecusável, porque o poeta sabe da universalidade da condição humana. Pedro Marques até "ilustra" a situação referindo-se a fatos históricos vagos, de uma guerra próxima de nós, em Paris, "aos beijos com aquelas moças brancas/ como nossa areia", como que saindo do geral para uma situação coloquial, para dessacralizar o discurso. Aí segue  despistando, como-que desmontando o cenário, com referencialidades desencontradas:"Mas o filme por estrear é bem outro"/ "Para as aldeias sem escolas e hospitais/ enviam cinquenta milhões em bombas"/  Em toda nossa pobreza semianimal,/ nós, os mesopotâmios, acreditamos numa cilada". 

         Pensamos estar diante de uma escrita automática, aleatória, como a que pretenderam os surrealistas. Nada disso. Ou que se trata do recurso "palavra-puxa-palavra" das vanguardas pós-concretitas que modulavam seu discurso no fluxo de encadeamentos verbi-vocais mais ou menos previstos pelas possiblidades do repertório linguístico.  Estamos, no entanto, diante de uma linguagem inventada pela lógica não silogística, de desdobramentos sutis, promovidos pela criação livre. O poema não se esgota em sua inscrição linear, requer releituras, certo de que os leitores completam o sentido a partir de sua percepção. Obra aberta, provocativa, dialogal sem imposição.

         E o final parece desconcertante: "Multidões de serpentes e escorpiões do deserto/ guardam e em posição"  e um terceto ainda mais desviante: "Qualquer trecho de pele menos protegido,/ cada jagunço pode tomar até vinte soldados" / "de dia e de noite".

         Que venham agora os hermeneutas, os críticos e façam a autópsia e revelem as entranhas. Que venham os psicanalistas, os historiadores. Melhor que venham os leitores de poesia, independentes de teorias estéticas, e façam sua própria interpretação.

            Ouso fazer, ainda, dois comentários aparentemente desconexos. Lembrar que Picasso nos ensinou que ele não buscava, mas que sempre encontrava, como que nos dizendo que estava sempre aberto para o novo, o inusitado, livrando-se da armadilha de só encontrar o que estivesse buscando... A outra questão é o fecho do poema. Quase sempre o poeta finaliza seu poema como uma coroa de flores, uma conclusão irrefutável, uma lápide, o corolário de um raciocínio, um gran finale... Que é sempre do poeta, induzindo, impondo, fechando o poema. Quase sempre funciona, mas fechando a porta, a janela do poema.

         Que tem isso a ver com o poema de Pedro Marques? Para o bom entendedor, uma só palavra basta.

A seguir, o poema citado, na íntegra, e outro mais, dentro dos escassos limites da tolerância dos direitos autorais...  

 

[A espera real dos bárbaros]

 

Eles chegam de todos os lados

 

Principalmente pelo céu e pelas mercadorias

que não temos

 

Há algum tempo estão mudados

 

Depois da luta encarniçada com os alemães,

entraram em Paris - veja o que é a guerra -

aos beijos com aquelas moças brancas

como nossa areia

 

Mas o filme por estrear é bem outro

 

Para as aldeias sem escolas e hospitais

enviam cinquenta milhões em bombas

 

Em toda nossa pobreza semianimal,

nós, os mesopotâmios, acreditamos numa cilada

 

Multidões de serpentes e escorpiões do deserto

                   guardam em posição

Qualquer trecho de pele menos protegido,
cada jagunço pode tomar até vinte soldados
de dia ou de noite

 

[O atropelado]

Quando ele voou embalado pela cidade,
a moça desconhecia time
ou possíveis amores

Mas ele pululava fresco como seus vinte anos

Os recheios da bolsa e do moço acrobata
confundindo-se nas suas mãos de noiva

Ele ainda dedilhou um acorde vermelho
nos cabelos dele
antes de tomar o ônibus errado

PEDRO MARQUES é doutor em Teoria e Historia Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e coeditor de várias revistas de poesia: Salamandra (2001), Camaleoa (2001) e Lagartixa (2003). Ornizou antologias e mantém a página www.poesiaamao.com.br

 

OUTROS POEMAS DE PEDRO MARQUES,
ENVIADOS PELO AUTOR

 

Ela detesta a série Máquina Mortífera,
adora novela das oito,
contesta a revista Carícia
e acha o Latino muito louco

Moça de família,
inteligente e bem educada,
sem nenhuma patente anomalia

Pergunta-se à patrícia:
Você é a favor da pena de morte?
Pelo fim da violência, of course!

E a legalização do aborto?
Que absurdo! Que culpa tem a criança?

         (Em cena com o absurdo, 1998)

* 

No way 

Menina, de fato és bela!

Mas não te quero

Seria preciso namorar,
conhecer passado
          família
    teu gato

Quero aventura de puta!

Contigo há trabalho filosófico

E como sou preguiçoso
pra voar com Camões:

Não te quero não

         (Salamandra - Revista de Poesia, 2001.)

* 

Bandolim

 

Do pulmão fumaça e canto

desenham modas

                            Imensas

A tosse concertada na voz que paira

Os olhos raiaram como um solo
enquanto bebia as unhas

                              – insistentes –

na volta da reflexão:

Esse bandolim é uma cascata!

Canta, canta bem-te-vi!

Eu era arteiro e o carinho certo depois do tapa

Quando ele domingava, a mãe dizia:

Olha a sombra!

É que eu seguia sua luz segura
Ele arrumava tudo – tudo tinha jeito!
- e às vezes solicitava o moleque:

Cadê aquele dedinho?

Vê se alcança a tampinha de pasta que caiu

                                               no ralo

O resgate me trazia importante

Improvisos não eram temidos

Também a gente se contestava,
cada qual no seu canto desafinado
até os ombros se perdoarem

Hoje, as sombras cobrem o mesmo chão
Suas piadas são minhas
As histórias do vô Pedro são nossas
Estes versos são seus

Amanhã, o barco do peito rebocado
pelo mar de rosas, pó, videoclipes e chuva

Mas olfato ou sabor desbotados
jamais vão calar o que tocaram

Nosso violão dedilhando até

         (Camaleoa - Revista de Poesia, 2001.)

*

Atelier

Trabalho um quadro dela

Não há pincéis, tempo ou esboço
Tampouco ela repara

Também não lhe darei de presente esta obra,
provisória como todas

Mas há luz!

Destaque-se a porcelana das pernas
A cabeça em pose de girafa
Os seios avançam sobre a hora do rush

Meus olhos pintam inutilmente

            (Lagartixa - Revista de Poesia, 2003.)

*

Mel

Seqüestrar você até o remédio
                            do mel
Curar essa ferrugem,
decidir pelo mais mel:
seus olhos ou o fogo do remédio?

Achar o que é mais sol:
o ouro dos seus olhos desata
o pássaro amordaçado na gaiola

E enquanto remexo seu tacho,
você açúcar
– três abelhas em cada olho
uma ferroada na alma

(De Olhos nos Olhos, 2008.)

 

 

SALAMANDRA – REVISTA DE POESIA. Número 1.  Campinas, São Paulo, Outubro de 2001.  Editores: Pablo Simpson e Pedro Marques. Capa e diagramação: Pablo Simpson.  Apoio: Instituto de Estudos da Linguagem e do Centro Acadêmico de Letras e Linguística – UNICAMP.   Ex. bibl. Antonio Miranda.

 

               

 

       MARIA CELESTE

       Afinal olhei os altos
da noite espessa
e achei Maria Celeste
marulhada no ar.

        Os pés desejavam asas,
as mãos queriam nadar.

        Nas olheiras do mar
reconheci minha ressaca,
marcas de cerveja na praia,
bancos de astros e corais.

        Projetor abandonado
às cadeiras,
me vi ilhas na areia.


 

        DISSONÂNCIAS

       Momento de suspiro
morte sem violência.
Disse tchau lá de longe
— primeiro contato, despedida.

        Calor com arrepio
sorte sem coincidência.
Sorveteiro buzina distante
— criança chora, água mina.

        Enfoque sem toque,
ter gosto do desgosto.
A pena desenhando a cena:
Coração! continua são...

        Calor com suspiro
morte com violência.
Quando veio de longe
— seguiu o tato de ser despida.

        Momento de arrepio
sorte com coincidência.
Lenheiro encravando cortante
— pássaro chora, leite mina.

        Toque sem enfoque,
gosto de só ter gosto.
A pena remodela a cena:
Coração! está salvo e são...

 

 

        DO-IN

       Há um penhasco dela
em cada beira desses versos.

        Como é bom beijar suas meias,
roupas de baixo e do seio.
Sem vergonha acaricia-la inteira.
Na barriga o frio vazio
de criança na balança.

        E quando luzes acesas,
roço os dedos na orelha
pousada de lábios leves.
Ela se torce num arrepio
que engatinha seus pelos.
A rouquidão do querer,
o porte de palmeira
e os seios, seus cachos.

        Toma um beijo à-toa:
ave em nave pra Lua.

 

 

        CHOQUE

       Durante um infinito e meio
as flores me dragando
os últimos ares de morto.

        Eu velho prematuro
varanda revisitada
por beija-flores.

        As ideias desmaiavam
ondas que não haviam.
O tempo me repousava nos braços.

        Um conjunto silenciava:
pedras se telefonando
sobre o desmanche do eu.

        Era preciso continuarmos,
embora nenhuma fosse a certeza
da utilidade das vidas.

 

 

        VERSÃO

       Eu e minha amiguinha
plantamos um Amor no quintal
e o regamos bem.

        Cresceu um formidável
pé de feijão que nos apontava o céu.
Nunca o escalamos,
só nossos jogos e cabanas em sua sombra.

        Um dia, eu e Celeste ficamos de mal
e loteamos nosso coração bem como a casa, os sonhos... essas
coisas.

 

*Página publicada em janeiro de 2011. Ampliada em setembro de 2019

 

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