MÁRIO CHAMIE
(1933- 2011 )
Nasceu em Cajobi, São Paulo.
Publicou de Lavra Lavra, em 1962, com um posfácio em formato de manifesto do Poema-praxis.
Seguindo-se a criação da revista Práxis dedicada às novas vanguardas pós-concretistas. Foi Secretário Municipal de Cultura e criou a Pinacoteca Municipal, o Museu da Cidade de São Paulo, e o Centro Cultural São Paulo.
A poesia experimental sedimenta uma tendência de linguagem e montagem textual que atrai seguidores e imitadores. Segundo Antonio Cândido, Mário Chamie “tentou de certo modo preservar a estrutura do poema, além de manter um forte rastro de realidade. As suas experiências são interessantes como tentativa de manter a tradição do Modernismo sem renunciar ao espírito de vanguarda!”.
POEMA-PRÁXIS (MANIFESTO DIDÁTICO [1961] Manifesto de Mário Chamie
De
CARAVANA CONTRÁRIA
São Paulo: Geração Editorial, 1998.
(Também em CD na voz do poeta,
música de Marcus Vicente de Andrade
:
CPC / UMES
AUTO-ESTIMA
Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.
De Damasco
ao meu legado,
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.
No pórtico
mediterrânico,
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.
Sem custo nem preço
que se meça,
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça
e a sentença
de meus adversários,
adversos e vicários.
Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Por onde entro,
venho de Damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.
POR TRÁS DA PALAVRA
Por trás
de toda palavra
há uma trama
cavada.
Só não se cava
nem se sagra
a palavra
enclausurada.
A clausura
da palavra
é a palavra
lacrada;
é a usura
da palavra
que não abre
suas veias
se se envenena
de nada.
Só se salva
a palavra
contaminada
por outra palavra
sangrada:
— pois a palavra
infectada
pelo que outra
desata
é a palavra
que em sua casca
se rasga
contra o nada
da palavra
enclausurada>
Por trás
de toda palavra
que não se perde
lacrada
há a trama envenenada
de toda palavra
tramada.
QUEDA INTERIOR
Se a queda é livre
o medo da queda
é preso.
Livre é a queda
sem embaraço
defeso.
A queda
de um homem
tenso
não é a guerra
do Peloponeso
pelo estreito
de um coração
perverso.
A queda
livre
é o próprio peso
de um coração
suspenso.
Toda queda
é o menosprezo
de quem cai
sobre si mesmo.
3. ZONA ARACNÍDEA
PEDREGOSA ROSA
A mão sorridente
sobre a boca
vertiginosa
põe os dedos efusivos
sobre a pétala
desta rosa pedregosa.
Não é a faca florida
a faca que mais corta
a cauda dessa rosa
rancorosa.
O não indecente
da hora
suspira e se afoga
no fofo dessa toca,
a cálida areia rósea
desta porosa pedra
vaporosa.
Por obra da hora
a mão insolvente
da pétala
floresce e afaga
a boca rochosa
de arestas na pedra
desta pétrea raivosa
rosa.
A CARNE É CRÁPULA
A carne é crápula
sob o olho cego
do desejo.
A carne é trôpega
se fala sob o pêlo
de outro desejo alheio.
A carne é trêmula
e fracta.
Crina de nervos,
veneno de víbora,
a carne é égua
sob o cabresto
de seus incestos
sem freios.
Fálica e côncava,
intrépida e férvida,
a carne é estrábica
nos entreveros
do sexo
com seus desacertos
conexos.
Sob o olho
sem mácula e cego,
a carne é crápula
nos arpejos
indefesos
de seus perversos
desejos.
8. ÁVIDA COIVARA:
COIVARA DE DENTRO
Com fúria
predatória,
é a floresta
o que se queima
na paisagem
de fora.
As cinzas
em que a árvore
se torna,
para a coivara
da hora,
adubam
o solo da planta
que revigora.
Assim,
a coivara
sobre a terra
é mudança
que resseca
o corpo seco da erva
para a volta
de outra seiva
que retorna
no outro corpo da flora.
Mas
por dentro agora
(paisagem interna)
na floresta incógnita
do homem
— coivara de sua hora —
as cinzas
não revigoram:
secam o adubo e a história
do homem que se devora.
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POEMA-PRAXIS
Cava,
então descansa
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.
Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca: rês, rês de malha.
Cava.
Calca
e não relembra.
Demência;mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de pausl
Cóva.
Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.
Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.
Cova,
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
Cava.
Os poemas a seguir foram escolhidos de sua Antologia Sábado na Hora da Escuta, publicado pela Summus Editorial, em 1978, já esgotada.
PALAVRA DE HOMEM
Um pouco de amargura não resolve.
Um pouco de amargura
se dissolve,
se nesta cidade
não conheces o outro
que está perto e pouco.
A palavra de homem em tua boca
espera a palavra e o nome
de peso e cobre.
Espera a voz do outro
que acusa a palavra pouca
e explode a armadura
dessa amargura rouca.
Falar não salva o homem.
- Estás na outra
palavra do outro
perto e solto.
Falar não abre a porta
não abre a cela
não salva o foco
de tuas chagas.
Falar só salva, salvo
se o outro
do outro lado
fale por tua boca:
- a fala pouca
que te dissolve
a arma pura
desta amargura
que não resolve.
GALERIAS
Nas vastas galerias de sombras
passam os detritos. As ondas.
Um barco navega: fantasma
com ferrugem nos cascos
com caveiras no mastro
com salsugem nas quilhas.
Nas baixas galerias das vias,
o lodo concentra-se em pilhas,
um sapo deglute a mosca,
seu peixe de água salobra.
Nas sujas galerias do esgoto,
um crime carrega seu corpo,
um trem trafega sem rumo,
um lodo concentra seu sumo.
Nas vastas galerias de sombras,
o pesadelo pesado do povo
pesa seu sono de chumbo,
dorme em seu leito de escombros.
RODÍZIO DO CORPO
Dia. A avenida jaz num leito
quando sou inerte neste reino
de dormir. Pedra sobre pedra,
seus andores duram em terra
e são chamados casa, edifício.
Movo os olhos e contudo rijo
meu corpo imóvel nunca leva
às duras alamedas graça aérea.
Necessário que o físico (cabeça,
feixe de ossos e ágeis peças)
permaneça rodízio senão moto-
contínuo onde ruas sejam o foco
de luz na sombra e vice-versa.
Eis mover. O movimento humano
das coisas que animo, se amamos.
ARADO
Não talho, o leve risco talha
a terra
e a garra vira a terra e leva
o barro
para a via, via de grama e pedra.
Nem malho, a fina serra fende
o tronco
e a foice corta o tronco e mostra
a polpa
para o dia, dia de sol e faca.
Não fundo, o raso corte trilha
o solo
e o sulco sulca o solo e rompe
o lodo
para o rio, fio de água e musgo.
Nem brando, o duro aço rasga
a carne
e o rasgo marca a face e deixa
a terra
para o cio, cio de fêmea e seiva.
A PARÁBOLA DO ALGODÃO E DO PÃO
se uma mordida num chumaço
de algodão/um arrepio.
se uma mordida num pedaço
de pão/um não vazio.
se o chumaço
no ouvido de um faminto
:um som sentido.
se um sem sentido
do faminto
:um pedaço não mordido.
se o não vazio de um pedaço
de pão/um bem mordido.
se o bom macio de um chumaço
de algodão/um mal sentido.
o mal sentido do faminto
de pão vazio:
com o sem sentido do vazio
num algodão mordido. |
|
De
Mario Chamie
OBJETO SELVAGEM
poesia completa
São Paulo: Quíron, 1997. 586 p.
Convênio com o INL.
Inclui os nove primeiros livros de poesia do Autor.
PALAVRA DE HOMEM
Um pouco de amargura não resolve.
Um pouco de amargura
se dissolve,
se nesta cidade
não conheces o outro
que está perto e pouco.
A palavra de homem
em tua boca
espera a palavra e o nome
de peso e cobre.
Espera a voz do outro
que acusa a palavra pouca
e explode a armadura
dessa amargura rouca.
Falar não salva o homem.
- Estás na outra
palavra do outro
perto e solto.
Falar não abre a porta
não abre a cela
não salva o foco
de tuas chagas.
Falar só salva, salvo
se o outro
do outro lado
fale por tua boca:
- a fala pouca
que te dissolve
a arma pura
desta amargura
que não resolve.
ofertório
oiaramuS:
se veículo de massa
este livro / sua cachaça:
leia agora bem depressa
este livro
às avessas.
*
às avessas
bem depressa:
Sumário versus oiramuS
neste livro e seus reclamos.
==============================================================
De
Mário Chamie
Espaço
INAUGURAL
São Paulo: Edições Leia, 1959
59 p. [Obra esgotada]
MANHÃ
A força centrífuga é a regente.
Primavera não ou seria?
Primavera, mulher sem carne
exibe a cor da respiração.
Homens se acendem
permutando olhares.
Fogo domado em seda,
as florinhas mal aceitam
barreiras, grades, terraços,
descontentes com o lajedo.
Os homens respiram
o incêndio dos corpos,
no oxigênio dos olhos,
dos olhos que são manhã.
A força centrífuga aviva
a hospedagem da vida-respiração.
CHAMIE, Mário. Os Rodízios. São Paulo: Clube de Poesia, 195-. 86 p 14x20 cm. autografado. Col. A.M.
SAZÃO
Pois é frio, violência casta
da água. )á é frio e rio
agudo mais que um dente
de marfim em carne negra.
Já é frio e sofro o lírio
ígneo de queimadura avessa.
Exaspera o frio em pele fria.
E franja de hortênsia, pétala
foi desfalcada do pólen, lisa
e pura nas infanções do estio.
Mas quero o ardor, distilo,
primevo riso, minha careta
do meu forte tão furtivo
nas ondas brancas do frio
que neva sobre a brasa e o arrepio
da raiva nossa lenta, parca de festa.
ïnadianta o céu solar de vaga testa
contra o frio que afoga pior que rio.
Nem te construo, não te imito
percalço de sazão! Nem meu grito,
ascensor por laje de urbe-via,
com velhice sem cansaço, firo
a furtar ao frustro-ar o risco
de sazão fria em hora fria.
Perco-me cordial e cardial me guio.
Página ampliada e republicada em dezembro de 2008, ampliada em maio 2009; ampliada em julho de 2010.
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