MARIA JOSÉ DE CARVALHO
musa renegada, por ALVARO MACHADO e ANTONIO CARLOS ABDALLA
A poeta, atriz, cantora, tradutora e mestra de teatro foi figura marcante na cultura paulistana entre os anos 1940 e 1970, mas hoje está tristemente esquecida
Intelectual da geração de literatos paulistas ativos por volta de 1945 – a Geração de 45 -, poeta concretista, celebrada tradutora de clássicos em seis línguas, a maior autoridade em dicção e estilo que o país conheceu, atriz, cantora e diretora teatral de concepções sempre arrebatadoras, apaixonada ativista em movimentos de renovação cultural. Mariajosé de Carvalho foi musa e mestra – amada e odiada sem meios termos por quantos a conheceram – e esteve no centro da cultura paulistana ao longo de quase 50 anos, até sua morte em outubro de 1995. A “neurose” contra a qual sempre lutou – e à qual chamava “praça pútrida” e “poço de solidão” – era uma dura provação para seus nervos e seu coração atingiu um limite.Raramente se viu neurose mais produtiva. Sustentada por cultura profunda, vontade e sensibilidade incomuns, essa descendente de comerciantes portugueses de Coimbra, criada no histórico bairro paulistano do Ipiranga, alimentou, durante décadas, uma “persona” de temperamento imprevisível e irascível. Verdadeira “caixa de Pandora” das relações humanas, o contato pessoal com Mariajosé reservava delícias e tormentos inolvidáveis. Quase sempre, terminava rompida com amigos e admiradores, para os quais surgia, de início, como autêntico mito. (Ler mais em: http://www.operaprima.art.br/revista/?p=148 )
"A ausência de pontuação desencadeia o ritmo escondido por pulsações internas, dilui os nexos conceituais, sugerindo caminhos de leitura quase aleatórios. Ocorrem pulsões eróticas e hieráticas a um só tempo, espécie de atmosfera constante que pervaga a quase totalidade do livro." DORA FERREIRA DA SILVA
De
Mariajosé Carvalho
Lunalunarium
São Paulo: Massao Ohno Editor, 1976. 103 p.
o iniciado
que nome te dar
na faca e no gume
na lima e no lume
na lama dos limos
na lança no laço
na trança no traço
na trama dos limbos
que névoa te envolve
e densa
turva
teu sacro perfil
se destravando
a treva
emerso a iluminaste
e
na dança do templo
que o corpo enlaça
a pupila embaça
o passo trava
e o sangue desata
em salva de prata
contido o lábio
na doce taça
que nome te dar
que medo te impele
que tolhida asa
o vôo te impede
que secreta chaga
de ferida pluma
te enluta o âmago
e que maga imagem
te dispara a seta
que o peito afeta
em bruma
e arfagem
ó
iniciado
que êxtase
nos espera
que ardente
dardo
através da estirpe
de transe
e treva
a dor
extirpa
o ir
é nosso rio
ao bramir
do touro
o ouro
de teu corpo
ao sol
o manso bezerro
o túrgido úbere
a plúmbea ave
o fruto maduro
lança e raiz
o chão e o sal
tua urdidura são
ao sol posto
evocamos
a chaga
que a taça embaça
e o violáceo laço
de obscura trama
nesta agosto
deposto
nos envolve o rosto
a palavra
o chá
CARVALHO, Maria José de. neomenia [São Paulo, SP]: Edições Papyrus, 1966. sp. Capa,ex-libris e coordenação gráfica: Gayvel Hochman. “ Mariajosé de Carvalho “ Ex. bibl. Antonio Miranda
CARVALHO, Mariajosé de. Romance de Lampião. Ilus. de Aldemir Martins. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1986. s.p. ilus. “ Mariajosé de Carvalho” Ex. bibl. Antonio Miranda
Um fragmento deste longo poema:
ROMANCE DE LAMPIÃO
de como ele foi menino
bom mancebo engenhoso
homem feito religioso
e um defunto mofino —
no dia sete de sete
ano de noventa e sete
no signo do caranguejo
terceiro dos nove filhos
de José e Maria Selena
vem Virgulino Ferreira
a este mundo de canseira
com vida predestinada
sua estrela é guerreira
sua estrada bandoleira
na faca e no bacamarte
estava a lei dos Feitosas
gente violenta e orgulhosa
pioneira do Ceará
gente de capitaes-mores
senhores de escravaria
sangue índio e português
em suas veias corria
o capitão Virgulino
de tal gente descendia
tamboretes redes bancos
oratório mesa quadros
imagens fotografias
lamparinas almanaques
folhinhas potes armários
panelas e prateleiras
moinhos trempes gamelas
ornam-lhe a casa natal
na pia são seus padrinhos
Senhora da Conceição
padre Cícero Romão
leite morno com farinha
pão de milho bem molhado
xerém coalhada escorrida
sua infância alimentaram
COLÉGIO. REVISTA DE CULTURA E ARTE. NO. 3. ANO I – SÃO PAULO SETEMBRO DE 1948. Ex. bibl. Antonio Miranda
CANTILENA DE DOMINGO DE RAMOS
Ai cantos sacrossantos de Solèsmes Velhos cantos de velhas abadias
Ai santos, ai poetas, ai heróis.
Já não sonho com paisagens e com gentes
De Salzburgo, Navarra e Bombaim Está tudo deformado, assassinado. Lembranças de Bisâncio destruídas Catedrais e castélos arrazados.
Estão todos gelados sobre a terra
Pois o fogo é de morte, não de amor.
Ai cantos sacrossantos de Solèsmes
Velhos cantos de velhas abadias
Ai santos, ai poetas, ai heróis.
Morta estou, que por dentro não há nada
Só cansaço e tédio de mim mesma.
Morta sou, que mortos são os sonhos
Sufocadas as simples alegrias.
Viver quero, mas não posso, mas não sei
Aos meus erros sucumbo, atormentada.
Estão todos gelados sobre a terra
Pois o fogo é de morte, não de amor.
Ai cantos sacrossantos de Solèsmes
Velhos cantos de velhas abadias
Ai santos, ai poetas, ai heróis.
A MORTE DE MANOLETE
Na arena o touro expirou
Cravado por frios ferros
O toureiro, em tórno olhou
Por entre palmas e berros.
Matou mil e tantos touros
Num estilo sem igual
Em terra que foi de mouros
Há um solene funeral.
Em Córdoba, contristada
Enterrou-se o matador
Pela cidade enlutada
O povo sucumbe à dor.
Um touro vingou os touros
Mortos pelo matador
Em terra que foi de mouros
Há colchas de negra cor.
Ferido por sua espada
O touro se ajoelhava.
Extática e fascinada
A multidão delirava.
Em terra que foi de mouros
Há um solene funeral
Um touro vingou os touros
Morreu um herói nacional.
Página publicada em agosto de 2010; página ampliada e republicada em maio de 2015. Ampliada em setembro de 2019.
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