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MARIA JOSÉ GIGLIO
Maria José Giglio, tendo estreado em livro em 1958, com Versos a um Polichinelo, comemora este ano seu jubileu literário. São cinquenta anos de rica poesia, avessa ao conformismo, voltada para a experimentação, tentando o novo – nunca, porém, como exercício de puro virtuosismo, antes como quem desbrava caminhos. Pérolas reunidas num colar harmonioso – perto de uma vintena de publicações poéticas, com as qualidades que fazem da autora um nome a irradiar de São Roque para todos os pontos do País onde a poesia ainda seja um valor, e não apagada referência. Sobre um ou outro de seus trabalhos lembro-me de ter emitido algum comentário. É o caso de Para Violino Solo, de proposta polissinestésica admiravelmente resolvida, e Não, a que dediquei resenha titulada com o oximoro “O Sim do Não”, na qual sublinho concisão e contundência, refinamento intelectual aliado a poder emocional, ludismo e denúncia social. (2008)
De: http://www.casadoescritor.org.br
Thanatos: Quatro estações
I
Suicido-me todos os dias
indiferente aos apelos
de meu corpo.
Lento e fundo
respira a lagartixa
esta manhã de junho.
Sinuoso
range-range de folhas
movimenta o jardim.
Pelos poros da matéria bruta
a casa exsuda.
Cansa viver.
Assisto com enfado
a intérmina reprise.
INVERNO outra vez
a paisagem embaça.
Álgido arrepio
resseca os ramos
para a ruína das sementes
no asfalto.
Das árvores desfolhadas
pendem como lágrimas
os frutos temporãos.
II
As chuvas chegaram.
Igual peixe no aquário
vejo o mundo liquefeito.
Mais que os brotos verdolengos
é PRIMAVERA
a algazarra dos pássaros.
Porque os Ipês
aveludam vagens
e os mornos xaxins
exuberam orquídeas
teço signo e fibras
esse nunca
que anulará.
III
Acontece
o ballet das andorinhas:
Silencioso
o alado círculo
revolteia
em torno a árvore.
Com olhar opaco ____ espio.
Com sentidos frágeis ___ capto.
E não entendo.
VERÃO, agora, é isto:
tropel de nuvens, ventania
chuva, granizo, e cansaço.
IV
Planto três SSS
no limiar deste OUTONO
apesar da terra árida
e o tempo escasso.
Estação das cigarras
da carnação dos frutos
do afã dos casulos
sob as folhas ásperas.
Intermezzo
que fecha o ciclo, e reinicia.
No monturo
dos anos gastos
viceja, sim, rasteira
a melancolia.
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GIGLIO, Maria José. O Labirinto. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1964. s.p.
14,5x21,5 cm. Planejemento gráfico e ilustrações de Tide Hellmeister. Col. A.M. (EA)
primeiro
I
Existe um trem
a correr, a correr
nos trilhos da memória
e aquela mão
pousada em minha mi anciã
Existe um trem
a correr, a correr,
traçando o labirinto,
e aquela mão
recuando ao infinito
um cassado
que não sei.
Existe o trem
e a mão
no portal da ilha
onde mora o Mistério,
e o Labirinto sou eu.
II
Esse trem
a correr, a correr,
avança
e me devora
e grita, meu grito
nas estações do além.
Depois, sonoro,
abre mil janelas,
voo por todas elas
perdida de mim.
E o trem
a correr, a correr
para o fundo
de um tempo vendado
de um sono encantado
onde despertarei
III
Existe aquela mão
— o bem? o mal?
não sei.
Existe a mão
erguida
no cimo da procura.
Não decifro
o que dizem os dedos
apontados
a um rumo vazio
Existe a mão
escancarando a porta
mas quem virá
abri-la depois?
IV
Se eu não entrar
quem me dirá
o que perdi?
Se me detiver
entre o medo e a dúvida
serei mais um rastro
mostrando o caminho.
Mas se chegar ao termo
com quais apelos
vencerei
o urro do sangue?
V
Não sei
aguardo
suspensa
entre a queda e o voo.
Estas paredes
entrelaçadas
sabem o segredo
daquilo que sou.
Prestes sulcos
enovelados
em meus próprios passos
me perderei.
Se não houver retorno
que esta partida
valha-me a vida,
a glória e o amor.
POIÉSIS Literatura, Pensamento e Arte. Ano XIII – No. 136 – julho de 2007 – Saquarema, RJ: Mota e Marin Editora e Comunicação Ltda. Editor Camilo Mota.
[Barroco, rococó]
Barroco, rococó
palavras que se aparentam
pelo mofo de seus os.
Quebra a língua
e a voz
o danado quiproquó.,
Além de forma e sentido
também decide
subjetivo
o ouvido.
GIGLIO, Maria José. Alastrar de agoras. Florianópolis: Edições SANFONA, 1989 [folha dobrada em quatro páginas] São 14 folhetos em uma caixa de plástico) Tiragem 200 exemplares.
Ex. bibl. Antonio Miranda
1
MÍSTICA PROFANA
SP, 1966
Quantos de nós em mística profana?
Velados deuses percorrendo a passos
esquecidos caminhos donde emana
a trêmula carícia de outros braços.
Em áureas de brocado se engalana
a entrada antiga, o friso dos terraços
Num cravo impressentido uma pavana
redescobre em mesuras alvos braços.
Galopa a senha o dorso da miragem.
Cenários desaguados na plumagem
possessa de intenções, e continua
além da esfera donde a vida roda.
Emburilado dia esculpe a boda
sobre o portal da inércia, a data nua.
3
EGO-ESFINGE
SP 1965
Quem a figura à sombra de meus olhos?
Mal presa pelas pálpebras descidas
igual no vale os espinhais aos molhos
sob um lerdo enflorar de margaridas.
Quem se nutre na farpa dos restolhos
e vem tecer-me faces comovidas?
Laçam maré na estilha dos escombros
em apliques de sal, dedos suicidas.
Entidade velada por dilemas
perfil de névoa orando nos meus temas
— quem a gerou, de quem nasceu, quem é?
Ícone informa. Devoção. Segredo.
Oculto sortilégio. Mais que enredo:
alma linguagem vida, morte até.
7
ALASTRAR DE AGORAS
SP 1966
Quem nunca em nós o encontro destas horas
em rodízios de fuga e desafio:
pensa-nos flores, alastrar de agoras
revoado de memórias pelo estilol
Velho tema segredo donde moras.
Retarda o bronze em clave de arredio
o crescendo emotivo nas demoras
sobre um surdo compasso de vazio.
Quando escarlate o dia se recorta
torre purpúrea assente sobre o monte
a tarde branca é uma menina morta.
Rompe noturno a trave das molduras
e sendo gota e mar à mesma fonte
ceva de orvalho estas manhãs futuras.
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página ampliada em outubro de 2021
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