Foto por: Renato Parada
MARCELO MONTENEGRO
Marcelo Montenegro nasceu em São Caetano do Sul (SP), em 1971. Além de poeta, é iluminador de teatro e roteirista de TV e cinema. Com o guitarrista Fabio Brum, lançou o CD Tranqueiras líricas, baseado no espetáculo homônimo em cartaz há mais de dez anos.
Ver também o ensaio: http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/marcelo_montenegro_um_poeta.html
escrito por Ricardo Mattos.
Poesia.br 2000. Org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. 144 p. 13,5 x 17,5 cm. (Poesia Br: 10) ISBN 978- 85-7920-117.2 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Buquê de presságios
De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.
Poema estatístico
Tem uma esquina prenha de um latido.
Trechos de pássaros que permanecem
nos muros que ficam. E vice-versa.
Um e-mail anotado às pressa no canhoto do tintureiro.
A cirrose portátil. A síndrome do pânico.
O enroladinho de presunto e queijo.
Tem a Mulher Mais Linda da Cidade.
Groupies de cabelo rosa. Poodles
de solidariedade. Alguém chorando lágrimas
de tubaína. Penélopes Charmosas.
Dick Vigaristas. Uma cara que já sai desviando
do cinema del arte, evitando ser atingido
por alguma conversa perdida.
Tem a mulher da vídeo locadora
que não conhece o filme que estou procurando.
Um amigo que diz que escreve só para colocar epígrafes.
Taxistas infláveis. Manicures em chamas.
Um casal que desce a rua na banguela
prolongando a gasolina daquilo tudo
que um dia fora. Eu ando apaixonado
pela mulher da vídeo locadora.
Lendo revistas na sala de espera
do consultório dentário. Tem uma
que venta. E um que desiste.
De arranhar os vidros do aquário.
***
Chega em casa estouvada madrugada / num
só prego/ bode / as pernas entornam
pela sala/ o fígado/ passional/ despedaça
na latrina/ o estômago suporta a última
besteira/ sem cerimônia/ por lá mesmo
fica/ neblina na geladeira/ guiado por
anjos/ asnos barrocos/ com desastre
adentra no quarto/ restam ainda as
mãos/ só o que precisa/ pra janela
escancarar/ e brevemente o que resta
arremessar/ no parapeito de alguma estrela
Making off
Acabar com toda gentileza
E concluir minha própria temporada e caça
Parar de me arriscar
Dar o fora da minha natureza
Esganar essa ternura metida a besta
Sabotar a causa
Mutilar a festa
Desistir do que penso
Psicografar meu riso
Sancionar meu egoísmo
Panfletar este silêncio
Cultivar uma plantação de morcegos
E no meu alfabeto maluco de medos
Apagar de uma vez por todas
Todos os aposentos da delicadeza
Estuprar essa leveza
Destituir-me desta maldita mania
De sempre esquecer
Uma luz acesa
Página publicada em abril de 2020
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