MARCELO DONATTI
Paulista, graduado em Letras pela Universidade de São Paulo – USP.
DONATTTI, Marcelo. Boatos do corpo. São Paulo: Editora Patuá, 2012. 127 p 18x23 cm. Editores: Alice Rocha e Eduardo Lacerda. Projeto gráfico, capa e ilustrações: Leonardo Mathias – flickr/leonardomathias. Tiragem: 500 exs. Col. A.M. (EA)
O PESADELO DE DEUS
Em pleno Juízo Fina, acordam os mortos para o encontro derradeiro.
Da turba, ouve-se com perfeição:
— Pois é, eu também O imaginava bem mais alto.
INTERIOR
Do banco da praça, um velho arremessa seus farelos aos pombos.
Crianças correm novidades aos pulos.
O Sol é cinza.
Amarrados aos donos, cachorros procuram o cheiro de tudo.
Já é tarde.
Minha janela abre os olhos do sexto andar,
pronta para me ver saltar.
MEMÓRIA
O que comemos ontem
pedia uma embalagem:
esôfago rarefeito,
estômago - o depositário.
O que comemos
diluído entre sulcos
e contornos benfazejos.
O ontem a caminho
das entranhas,
preparando o insólito retorno.
— O que comemos, ontem?
Contração, força muscular: arrepios.
Deslizamento peristáltico,
massa subliminar,
tumulto,
um testamento.
A MULHER VELADA
Como sempre ao meio-dia,
balança suas formas largas
pelas calçadas do comércio
aquela mulher sem beleza
que eu
— por minha conta — chamei Beatriz.
O movimento grave
de suas carnes generosas —
lembrança das pinturas de Rafael —
impede que se compreenda o pouca idade e mesmo
a presença desgovernada daqueles seios mínimos.
A senhora não me vê,
enquanto acompanho seu recorte tranquilo
manobrando a avenida pesada.
Sumirá em breve, bem sei,
e nem mesmo assim
consigo pensar em um sobrenome
que a torne feliz.
Página publicada em novembro de 2012
|