MAIARA GOUVEIA
nasceu em 1983, em São Paulo. Possui poemas e artigos sobre cinema e literatura publicados em sites da internet, revistas e jornais. Entre eles, o ensaio "A Plasticidade na Poesia de Cesário Verde", publicado em agosto de 2006, na revista eletrônica Agulha e o artigo intitulado “A Exuberância & o Requinte”, publicado no suplemento cultural O Augusto, do Jornal da Paraíba, acerca da poesia dos poetas paulistas Rodrigo Petronio e Dirceu Villa.
Foi vencedora do 3º lugar do I Festival de Música e Literatura das Faculdades de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, na categoria poesia, e finalista da 15ª edição do Prêmio Nascente, realizada no ano de 2006, com o livro de poemas,
ainda inédito, O Silêncio Encantado. A obra inaugural sofreu alterações e hoje se chama Pleno Deserto (à espera de editor).
OUTRA VEZ O CORPO
O fruto da bondade
não explodiu nesse solo rude.
Somos o Corpo e outra vez o corpo.
Animal divino que saqueia e fere,
cobre de lírios esse ventre estrangulado.
TURBA
Da saliva quente, o primeiro vulto.
Ao redor das omoplatas sibila o segundo.
Ascende da nuca.
Do baixo-ventre o terceiro pula.
Num volteio ímpar constrange a cintura.
No instante em que o quarto surge do artelho,
sob o frêmito, vem a turba.
Os olhos sucumbem nas dobras do corpo.
A língua, na frincha.
E a face turva.
A MORTE CANTA. O CORPO SONHA.
Horas em chamas
Bebe a chama escura das horas,
o sangue do tempo.
Deita na sombra que estiola
no corpo sedento.
Cada segundo é uma porta aberta
Vejo seu dorso.
Quero tapar todas as frestas.
Mas você foge entre os dedos, nos seios,
no meio das pernas.
Enquanto a morte canta
Esse sopro de gelo na espinha é a morte que canta:
Não se retém o amor na concha das mãos.
Não se retém.
O amor, não se retém. Fica.
Enquanto puder.
O corpo sonha
Não vive a despedida com afinco.
Mas suga o primeiro pasmo até a última gota.
Há tanto mistério a ser capturado em pleno dia.
Há tanta noite umedecida no sonho do corpo.
NO SUMIDOURO
Ao redor do quarto
migra um cortejo de aves. Não vemos
pois estamos fechados.
Ao redor do quarto
um barco repousa em um mar sem ondas. Não vemos
pois estamos partindo.
Ao redor do quarto
baleias abertas e peixes mortos cobrem a angra. Não vemos
pois estamos sangrando.
Porque estamos sozinhos não vemos
suicidas engolfados nas brânquias tóxicas
dos cardumes. Não vemos
a morte solitária dos corais. Não vemos
a embarcação vazia permanecer
no silêncio das águas. Não vemos:
pois estamos no escuro.
POLIEDRO
Ao meio-dia, a praia queima,
o mar verdeja, a sombra rubra,
o sol golpeia as ondas e
as águas, líquidas fagulhas,
virando onda, e, de repente,
como se a areia crepitasse,
feito de um vidro incandescente,
espalhasse o brilho, estilhaços;
e ao mar, a língua de fogo
do vento laranja subindo,
trouxesse o ímpeto dos fortes
e a aparência dos guerreiros,
e como um elmo prateado,
o cintilar sobre o cardume,
e a vivacidade das cores,
compondo um quadro impressionista.
E a praia, como um espelho,
um poliedro envidraçado,
a batalha de rubro e prata,
e o enorme incêndio nas águas,
como reflexos de tinta.
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De
Maiara Gouveia
PLENO DESERTO
Desterro, SC: Edições Nephelibata, 2009
"Tessitura de música e imagens e, ao mesmo tempo, negação do esteticismo, Pleno Deserto devolve a linguagem à sua foz e à sua nascente: o corpo."
RODRIGO PETRONIO
Fetiches
Olhos feito mãos dentro das coxas
as pupilas vibrantes entre as frestas
roçando o rendilhado branco
no meio túmido entre as pernas.
Ai, quanta deselegância
eu provocar tanto constrangimento!
mas depravada ainda sinto o grão prazer
daquele breve erguer das sobrancelhas.
Inerme Desencanto
depois de tudo, a cintura entre os dedos
absorvo o silêncio encantado
ela ainda pulsa, não entende,
quando calado sorvo todo encantamento
porque a palavra nesse instante é vã,
e a resposta no suor desfalecido
é, sem dúvida, mais válida
— deixa o corpo descansar sorrindo
deixa o silêncio ecoar bebendo
a rosa cálida de sabor divino
mas ela, aflita, pousa em mim uma vontade
ainda tesa e retesada e até no rosto
a vontade repetida reitera.
Desencanto
As mesmices cotidianas desmoronam
quando estamos juntos.
Parece que o tempo pára e averigua
que cintilamos de volúpia.
Consumidos pela alegria de trazer à tona
um prazer legítimo
que não se repete em mil eras.
De repente, depois da viagem,
voltamos a nos ver entre os limites das paredes:
nossos corpos não vêm mais com paisagens,
ou entre nuvens de luz furta-cor e néon.
Já não somos deuses.
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