LUPE COTRIM GARAUDE
(1933 — 1970)
Maria José Lupe Cotrim Garaude Gianotti (Lupe é uma palavra formada pela junção das primeiras sílabas dos nomes de seus pais — Lourdes e Pedro) nasceu em São Paulo (SP), em 16 de março de 1933. Na década de 50, estuda literatura, línguas e artes. Em 1961, faz um programa de TV, que a projeta publicamente. Começa a estudar Filosofia na USP em 1963, onde conhece José Arthur Gianotti, com que viria a se casar. Em 1968, é nomeada professara de Estética da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, cujo centro acadêmico leva o seu nome. Faleceu em 18 de fevereiro de 1970. Quando faleceu, foi concedido o prêmio Governador do Estado ao seu livro Poemas ao Outro. Tem muitos admiradores, basta ver a freqüência da citação do seu soneto Saudade nas comunidades do orkut. Domingos Carvalho da Silva citava-a sempre por sua beleza e pela formalidade e clareza de seus poemas.
Teve dois filhos: Lupe Maria Ribeiro Lima e Marco Garaude Giannotti.
Bibliografia: Raiz Comum (1955); Monólogos do Afeto (1956); Entre a Flor e o Tempo (1961); Cântico da terra (1963); O poeta e o Mundo (1964); Inventos (1968); Poemas ao outro (1970); Encontro (1984), antologia pela Ed. Braziliense.
Página organizada por Salomão Sousa, Agosto 2007
SAUDADE
(a Guilherme de Almeida)
A saudade é o limite da presença,
estar em nós daquilo que é distante,
desejo de tocar que apenas pensa,
contorno doloroso do que era antes.
Saudade é um ser sozinho descontente
um amor contraído, não rendido,
um passado insistindo em ser presente
e a mágoa de perder no pertencido.
Saudade, irreversível tempo, espaço
da ausência, sensação em nós premente
de ser amor somente leve traço
num sonho vão de posse permanente.
Saudade, desterrada raiz, vida
que se prolonga e sabe que é perdida.
Ó QUE IMENSO DISSIPAR
Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.
Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.
Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspectos de vastidão.
Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?
Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?
Um pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.
DE PEDRA
— Eu sou de pedra, me dizias,
a defender tua distância.
E esquecias o musgo,
essa tua epiderme de ternura,
e o teu corpo de carinhos,
num horizonte de água e terra,
a te envolver na vida.
— Eu sou de pedra — insistias.
— Pesado. Denso. Inalterável.
De estofo eterno.
Apenas estou, não sofro;
se algum gesto me ferir,
eu sou duro;
quebrarei o gesto sem sentir.
E esquecias
que és pouso de borboletas,
alicerce de flores,
abraço de raízes,
vulnerável em tudo
do que em ti pertence
e minha mão possui, acaricia.
— Eu sou de pedra.
E esquecias, esquecias.
DESTINO MINERAL
Sou feita de uma carne perecível
futuro de outra carne, sem nenhuma
eternidade. A rocha é uma invencível
parte da terra; que ela me resuma
no seu mesmo destino mineral.
A solidez ausente que tortura
nossa matéria frágil, no final
se renderá: serei de pedra dura.
Nunca mais chorarei nessa passagem
de poesia. Com nítida certeza,
recorto nas montanhas minha imagem
mais que raiz, expressa na beleza.
Pela terra em que não me desfiguro,
hei de surgir um dia em cristal puro.
AO AMOR
O que desejas de mim
nunca o dará o lampejo de um momento,
a conquista de um dia da montanha.
Meu corpo — para ti somente —
deve emergir a cada gesto 1ímpido
e profundo deve ser meu futuro
para reter-te e recriar-te permanente.
Sei que em mim te estenderás, não mais disperso,
em desejo e em procura de teu filho
e que todo movimento de meu ser
será o rumo de teu universo.
E por isso temo. No meu sentimento
sofro por ti. Receio
ser larga a hesitação de meu caminho,
ser um mito a conquista da montanha,
ser pobre e fugaz o meu espaço
na extensão que reduz teu infinito.
De
INVENTOS
Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
DE MAR
III
A chuva cai, sem figura,
mantendo espaços vazios
na sua própria textura:
é uma água desfiada.
Diante dela o mar contido
É superfície compacta.
Nele tudo é preenchido,
indo pela mesma água.
Não tem vão ou intervalo
a carne crespa do mar,
mas paredes maleáveis,
bem lisas de penetrar.
A chuva que estende ao mar
os seus dedos insistentes
é uma presença molhada
de tanto se derramar:
o mar guarda uma secura
de quem sabe repetir
em si mesmo seus desígnios;
é seco porque perdura.
Embora suas franjas leves
se esparramem pela areia
toda maré lhe garante
a forma guardada e cheia.
No seu tempo passageiro
mesmo de raio ou trovão
a chuva é o que escorre,
não tem corpo ou duração.
Diante de sua água estreita,
só de perfil, vertical,
o mar estende a planície
tramada em fôrça de sal
e germina suas águas
em permanência e conquista:
sustenta sua espessura
e mantém entranhas vivas.
DE AMOR
(entreato)
POSSE II
Ele — Seduzir o cotidiano pelo corpo.
Penetrá-lo deste brilho longo,
compacto,
onde o cansaço não é tédio
mas úmido intervalo.
A paisagem não sustenta
mais os olhos; estrelas
despojaram-se dos monólogos,
a flor voltou a si, não mais
dizer exausto, a primavera guardou
sua intimidade no discurso
das árvores, e o amor,
esgarçado de imagens,
procurou outro equilíbrio
além da frase, de um silêncio
a outro.
Nem sempre a paz levou-nos
a suas tácitas paragens:
a liberdade aspirou um ser estranho,
em que de novo nos olhássemos.
No corpo prosseguimos
onde o amor parava.
E inventamos. Sem palavras
tornamos nossa a carne da manhã,
a exaurir o tempo, sem fidelidade
alguma, no dia imprevisível,
além do nosso invento.
MONÓLOGO IV
Ele — É o tempo meu receio, não o amor,
que este perdura. Por novos desígnios
refaz em outro aquilo que não for
mais seu momento: trama outro domínio.
Esta brisa entre nós, este sossego
agudo de desejo, esta presença
alerta, esta carne toda apego
certo se apagam: tempo algum sustenta
ou seduz uma solta intensidade.
É a hora que me assusta: o amanhã
do íntimo ser neutro, e a unidade
uma palavra a mais na posse vã.
O futuro só nasce de um invento:
nós dois, amor, nós somos este tempo.
MONÓLOGO VI
Ela ......................................................
Se entre nós cada folha de silêncio
for linguagem dos gestos desprendidos
e em clareiras tombar cada momento
o que outrora foi verde e preenchido,
segurarei na queda tua imagem.
Antes que perca todos os indícios
desta palavra dita na coragem
da posse em nós, hei de levar comigo
o último desejo, o corpo intenso
para tramar de novo um novo invento.
De
Lupe Cotrim Garaude
O Poeta e o Mundo. Poesia.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1964. 56 p.
PAISAGEM DE UMA AULA DE FILOSOFIA
Porque a pedra
está fora do tempo
e eu por dentro;
porque a terra se desata,
vegetal,
e a mim falta
esse fôlego verde,
em tênue movimento;
porque entre raiz e folha
o animal salta,
elástico, e desconheço
liberdade tão alta;
porque mineral e vegetal
uma floresta é segredo
aberto ao animal
e em mim se enlaça
pelos cipós do medo
— sei-me de outra espécie.
Em que sou fraco. E antes
de tudo—breve.
Mas nessa extensão tão plena
é que mais compreendo.
Tomo nos meus braços,
intersubjetivamente,
o espaço total, que conduz o infinito.
E são rochas de leões,
marés de outono,
folhas alçando-se no arrojo
dos pássaros, répteis
em curvas de diamante,
montanhas côncavas, murmurando,
florestas em ondas, sobre as águas
as distâncias são formas
—corpo de estrela, impulso de planície,
a morte é apenas uma flor
vermelha, que passa no vento,
o amor se desvenda nas colheitas,
rostos anônimos surgem
dos troncos de cimento,
a solidão é o rosto da humanidade
a terra é voo, o céu se reaproxima,
e em tudo estou presente, simultâneo,
o horizonte a meus pés,
como um riacho doce.
Olhando dentro de mim,
de dentro da natureza,
eu a refaço—e invento a beleza.
GARAUDE, Lupe Cotrim. Cânticos da terra. Desenhos de Aldemir Martins. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1963. s.p. 23x31 cm. Sobrecapa de cartão com laço. Tiragem: 1000 exs. Da edição foram tirados 50 exemplares especiais numerados e assinados contendo um manuscraito e uma água forte original. Col. A.M. (EE/LA)
II
Ritmado andar azul
e calculado
de um solene pavão
•— longa cauda em flor,
ad&rno de linguagem
e proteção.
Num grito gutural,
agudo como soluço do mundo,
o súbito apelo da solidão,
no corpo prolongado
de plumas e surpresas.
Ao ver-se observado
desabrocha em súbito arco-íris,
provando que a beleza
pode ser escudo iluminado
e que a vaidade
lhe confere uma auréola de certeza
na inutilidade.
Dentro da paisagem
cortada de pássaros
um voo se cala,
enquanto o pavão cintilante,
aberto em primavera,
caminha pela terra um orgulho
sincopado,
sabendo que a natureza
derramara nele
um gesto distraído e delicado,
no instante em que criava o verme
e sonhava a estrela.
III
No ar suspensa
teia tecendo
seu íntimo movimento.
Aranha movendo-se fora
ao percorrer-se dentro.
Fagulha de brisa,
corte no vento,
impulso nos passos de ar
em que si mesma
a aranha pode sustentar.
Coreografia aérea,
sedoso equilíbrio
subindo da terra.
Frágil teia transparente
inventando um céu
em qualquer lugar.
Fios prateados
que o olhar desenha
sem poder caminhar.
Quisera ter
tamanha seda,
para criar um novo chão
entre a altura
e a solidão.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
LUPE COTRIM GARAUDE
(1933-1970)
Nació en São Paulo, en1933, y falleció en 1970, en Campos do Jordão. Em 1952 se licencio en Cultura General y Bibliotecología, por la Sedes Sapientiae. Em 1961 produjo y presentó el programa de televisión A Semana Passada a Limpo. Em 1968 fue nombrada profesora-colaboradora de Estética de la recién creada Escuela de Comunicaciones de la Universidade de São Paulo. Recibió, em 1969, el premio Gobernador del Estado (poesia). “La poesia de Lupe Cotrim Garaude, emocionalmente espontânea y verbalmente contenida, no usa ningún artifício y es hecha casi spolo de sustantivos.” (Gilberto Mansur) En Lupe la poesia está siempre en estado de gracia y tiene una sensualidad insustituíble. Anda por sus entrañas con la misma emoción de la descubridora. No tiene limites ni secretos. Está allí, detenida y ardiendo en su sangre como una densa y melodiosa inquietud creadora.
Todo cuanto toca se convierte en poesia. Es su elemnto natural y volcánico. Publicó Monólogos do Afeto (1956), Raiz Comum (1959), Entre a Flor e o Tempo (1961), Cânticos da Terra (1963), O Poeta e o Mundo (1963), Inventos (1967), Poemas do Outro (1969). Sus mejores poemas fueron, amorosa y celosamente, reunidos por su marido, Profesor José Arthur Giannotti, en Obra Consentida (1973). La notícia de la muerte de Lupe Cotrim Garaude inspiro a Afonso Félix de Sousa esta “Primera Glosa Elegíaca”:
“En la tarde, la aparición: nimbada, etéra. / Yo Le extendía el ser y estas manos ásperas,/ era hecha de gracia, de inmateria. // Era hecha de garza: y deshacía, / diáfana, esos nudos de que soy hecho,/ dando razones de estética, y poesia.// Bastaba tocarla, y uma canción nacía./ Y entre nosotros dos, unos versos de campesino/ y la leyenda del sapo y la estrella que se repetia.// Y el mismo cuento: alada, etérea, / joven se fue, de los dioses hija y electa,/ Ella hecha de nube, de inmateria.”
(Afonso Félix de Souza: en Chão Básico Y Itinerário Leste, 1978)
TRADUCCIÓN Y NOTA INTRODUCTORIA DE
ADOVALDO FERNANDES SAMPAIO
CLARA MAÑANA
Hoy la mañana transparente
contorna todas las cosas
com su límpida y clara
función de esclarecer,
pero em la limitación
condicionada en el tiempo
de ser solamente mañana,
no osa, cobarde de la noche,
resolver la ansiedad
que paira en la claridad
de las cosas esclarecidas —
Quedan amplidados
Resentimientos sin más disfraz
y la alegrias violadas
heridas por la mañana
que envuelve el mundo
sin saber nada ocultar,
dejándome sola y precisa
en las cosas irresolubles
— densnudada en nitidez.
(De Monólogos do Afeto, en Obra Consentida, 1973)
TIEMPO DE AMOR
La lluvia de otoño moja
el peso de mi altura
y tal rosa que deshoja
tengo pétalos en la figura.
Por entre árboles y desierto
yo danzo mi existência
de todo lejos y muy cerca,
en una presencia de ausencia.
Iré por todas partes;
en esa posesión del universo
llevo un tiempo de amor
por las tardes de mi verso.
ASPIRACIÓN
Poder amarte
en la confusión difícil
de las sensaciones que exigen
lo nuevo que no sé.
Poder amarte
en lo excesivo
de las aspiraciones divididas
que me descaminan.
Sufriste,
porque eras el punto inmueble
al cual yo tornaba siempre.
Inmueble,
eras la revuelta
de mi movimiento.
(De Raiz Comum, 1973, en Obra Consentida, 1973)
MAR I
El mar es este estar
sobre las cosas, derramado.
Es antes ir, penetrar,
tal pez metalizado,
y penetrar por el gesto
de quien arriesga
su propia carne en la sal,
en la epidermis de la mirada.
Para el cuerpo recubierto
con los vestidos, con los haberes,
para la mano que retiene
al mundo em vários poderes,
el mar devuelve la desnudez,
despojando cada rostro
y desconoce aquello que tiene,
pero no tiene su propio cuerpo.
En la tierra firme las mareas
de cosechas luminosas
no son de los brazos que nadan,
sino del contorno que vigila.
El mar de ondas frondosas
con sus troncos submarinos
entrega el sabor secreto
al salobre de sus vinos,
cierta blancura arcillosa
de los peces y sus entrañas
en la espuma de la marea,
tan breve que borra el sonido
a quien se hunde en el huerto infinito
de água libre, sin fronteras,
que es la del propio mar del mar.
(En Obra Consentida, 1973)
Extraído de la obra
VOCES FEMENINAS DE LA POESÍA BRASILEÑA
Goiânia: Editora Oriente, s.d.
Página republicada em maio de 2008; ampliada e republicada em fev. 2009.
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