JOSÉ MARINHO DO NASCIMENTO
É professor universitário. Participou das coletâneas do Grupo LIvrespaço e publicou, em coautoria, Papoulas & Amnésias, seu primeiro livro de poesias. O último lançamento foi Murilo Mendes e a imagem poética do assombro: análise de poemas.
O VÔO DA BORBOLETA
Há uma lagarta bebendo água na margarida
que chega ao clímax nesse momento.
Algumas pétalas caem como lençóis ao vento,
lentas, lentas até o chão.
A lagarta se contorce beijando o pólen,
lambuzando-se toda — feliz...
— não entendo a cópula do vegetal com o animal,
não me entendo.
De verde que era está amarela,
e desfolha a margarida sem piedade.
Meu Deus, que horror! Eu a espiar a intimidade,
a imaginar coisas que não existem.
A flor está solta no espaço
e o animal está solto na flor,
tranquilos, como o pousar do pensamento
em algum lugar.
Que se faz do tempo que me prende aqui?
Tão crisálida quando meus desejos...
Nada mais há agora a não ser contemplar
o vôo vagaroso da borboleta se perdendo no ar.
POEMA DOLORIDO
Ninguém entende de dor mais do que eu.
Pois que arranquei dente sem anestesia. E não foi de leite.
E também quebrei o pé. Fratura exposta. Em dois lugares.
Jogaram gordura quente no meu reto uma vez.
Em diversas oportunidades fiquei na noite no vento no frio
[esperando alguém que não veio nem virá.
Ninguém pode entender de dor mais do que eu.
Que perdi mãe e pai sem nunca tê-los tido.
E tive um filho de cinco anos jogado do sexto andar de um prédio.
Risquei fósforo no olho.
Pari. Sem ter útero.
Escarrei e, errando, acertei meu próprio pé.
Um dia
furei o indicador num delicado espinho de rosa. O sangue
[fragrante chupado.
E mesmo assim as pessoas continuaram a viver muito
[calmamente depois disso.
A dor é minha morada mais bem protegida.
Poemas extraídos de SEDUZIR PARA A POESIA; trajetória do Grupo Livrespaço 1983-1994. Org. de Daila Teles Veras. Santo André, SP: Alpharrabio Edições, 2008.
Página publicada em janeiro de 2009 |