JOSÉ BONIFACIO DE ANDRADA E SILVA, o patriarca
Bacharel em direito e em Filosofia. Proclamada a independência do Brasil, foi deputado as Cortes do novo Império e nomeado ministro. Foi tutor de Pedro II. Nasceu em Santos, S. Paulo, a 13 de julho de 1763, e faleceu a 6 de abril de 1838. Poeta, prosador e orador.
BIBLIOG. — Poesias avulsas de América Elysio, Bordeáux, 1825.
SER E NÃO SER
Se te procuro, fujo de avistar-te,
E se te quero, evito mais querer-te,
Desejo quase... quase aborrecer-te,
E se te fujo, estás em toda parte.
Distante, corro logo a procurar-te,
E perco a voz e fico mudo ao ver-te,
Se me lembro de ti, tento esquecer-te,
E se te esqueço, cuido mais amar-te.
O pensamento assim partido ao meio,
E o coração assim também partido,
Chamo-te e fujo, quero-te e receio !
Morto por ti, eu vivo dividido,
Entre o meu e o teu ser sinto-me alheio,
E sem saber de mim, vivo perdido !
Extraído de SONETOS BRASILEIROS Século XVII – XX. Colletanea organisada por Laudelino Freire. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cie., 1913
BRAYNER, Sônia, org. Poesia no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização
Brasileira, 1981. 395 p. 13,5x20,5 cm. Inclui poetas das Origen e Barroco,
Neoclassicismo e A rcadismo, Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo e Pre-
modernismo. Capa: Eduardo Francisco Alves. “ Sônia Brayner “ Ex. bibl. Antonio Miranda
EPISTOLA
Escrita de Coimbra no começo da primavera de 1785.
. . . Nor ye who live
In luxury and ease, in pomp and pride,
Think these lost themes unworthy of your ear.
THOMPSON. SEASONS.
Tu, em quem liberal a natureza
Uniu uma alma grande a um peito humano,
Tu que vês, doce amigo, caro Armindo,
Os míseros mortais vagar sem tino
De desejo em desejo, de erro em erro
No imenso barulho das cidades,
Donde a risonha paz e a irmã justiça
Banidas pelo vicio vão fugindo;
Foge do alvergue das paixões e crimes;
E pois que a primavera deixa a nuvem,
E fresca desce sobre os nossos campos,
Companheiro vem ser da natureza.
Se anos inteiros lá na corte gastas
Com rostos mil fingidos, vem uma hora
Gastá-la co'a amizade. — Verdes freixos,
Que a casa me rodeiam, sombra amena
Copados guardam para ti. — As ninfas
Colhem as novas flores, que do seio
Da terra o almo sol resplandecente
Lá desde o assento seu, raiando, cria.
Com elas tecem mil gentis grinaldas
Para ornarem-te a fronte, ò caro Armindo!
Ah! se a terna Delmira inda te lembra,
Deixa essas Márcias, deixa essas Nerinas,
Nevados corações, que amor não sentem.
Longe de nós, Armindo, esses amores
Que acasos geram, que desfaz uma hora:
Longe de nós, Armindo, esses amores
Prodigamente dados, que a vontade
Enjeita por fastio ou por cansaço.
Amor não quer atletas furiosos,
Que à meta corram desbocadamente.
Folga de amantes vivos, mas prudentes:
Otil descanso, e férvidos prazeres ...
Então os meigos beijos voadores,
Co'as asas buliçosas refrescando
As amorosas faces inflamadas,
Renovam a paixão, dão-lhe energia.
Doces meiguices, brincos engraçados,
Tudo precisa amor; muito lhe servem.
De pâmpanos frondosos coroando
Nossas cabeças, rubicunda a face,
Sentados com Delmira em brando musgo
À sombra da floresta, rodeados
De festivo esquadrão de cupidinhos,
De desejos gentis, de leves risos,
Com o loiro Madeira, que desterra
Negra melancolia pensadora,
Bassareo Evohé, nós gritaremos.
Lá quando a tarde foge amedrontada
Do inverno irado, que seus ventos junta,
E a noite principia a abrir as asas;
Voltando para a casa sossegados
Com teu modo socrático, mordendo
Irás no velho mundo, que empeiora.
Graciosas pinturas delicadas
De puros Zeros, que per si não vivem,
Do político Mévio barrigudo,
Dignas do grande Pope irás fazendo.
Desmiolada cabeça, em cujo oco
Podem melhor girar trezentos mundos
Do que no espaço do divino Newton!
Quantos pequenos embriões das letras
No vasto alcáçar da benigna deusa
Alojados verás à perna solta!
Apática manada que vegeta,
Enquanto poucos vivem. — Grande deusa!
Coeterna do caos! mãe dos asnos!
Estupidez afável que derramas
No calejado peito de teus filhos
Insípida alegria. — Ou abrindo a fonte
Fazes correr em bicas mil palavras,
Escoltadas de símbolos, de enigmas;
A cuja vista tímida a verdade,
Coitadinha verdade! espavorida
Desampara a cadeira de Minerva;
Reina no mundo, pois, nascente deusa,
E ao redor de teu trono bocejando
Teus gordos filhos vejas descansados
Mil sonolentos vivas entoarem!
Eu não desejo, nem deseja Armindo
No altar da razão queimar-te incenso.
Vem pois, amado amigo, e a natureza
Contemplemos uma hora. Solitária
Nos campos mora, longe das cidades.
Já sentados à sombra de altos freixos,
Depois que o sol do seu doirado trono
Aclara os céus, e os zéfiros lascivos
Faz ciciar nos campos florescentes;
Já lá sobre o rochedo alcantilado,
Que os prados do contorno senhoreia,
Donde a águia veloz, cortando os ventos,
Demanda as regiões de empireo éter,
Por todas estas cenas da natura
Errar deixemos livre o pensamento.
Tu, amável verdura, que atavias
Os campos geniais na primavera,.
Ah! faze com que Armindo solitário
Entre a vária paisagem matizada
Veja correr seus dias na inocência.
Pura amizade, cândidos amores
Já esperam por ti, meu caro Armindo:
Com Almena e Delmira, de mãos dadas,
Em ameno passeio gastaremos
As horas da manhã! Que lindas cenas!
Eis em seu carro d'oiro a branca aurora
As trevas afugenta do horizonte,
E debilmente ainda os campos cora!
Eis as mansas ovelhas temerosas
Fazem soar os prados co'os balidos,
Acordando os pastores preguiçosos!
No bosque verdejante filomela
Gorjeando se queixa docemente!
Já o bando voador em meigos laços
Com mil lascivos namorados beijos
Impelido de amor se une ditoso;
Laços gentis da próvida natura!
No brando seio os zéfiros travessos
Vénus aquenta do noturno frio.
Ela mesma destila orvalho puro,
E com liquidas pérolas borrifa
Os tenrinhos botões das novas rosas!
O' alma do universo, ó Vénus bela!
Por ti respira tudo o que tem vida.
A um teu aceno só milhões de seres.
Já nos profundos reinos do oceano,
Já na face da terra, ou lá nos ares
Renovam a cadeia do universo!
Tu viver fazes a matéria inteira!
Todos quantos respiram, vivem, sentem
Na terra e mar, nas regiões do vento,
Obedecem teus mandos, grande deusa!
Sim, meu Armindo, vem passar teus dias
Nos ternos braços da fiel Delmira.
Tu e mais ela, eu e mais Almena,
Ignorados da turba viveremos
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridículas,
Frenéticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.
Ah! escapa ao naufrágio! ah! busca o porto!
Assim Voltaire, o vate dos filósofos,
Cansado de lutar com vis intrigas,
As cortes desprezando, retirado
Na aprazível Ferney, viveu contente:
Assim o pensador Rousseau sublime
Herborizando terminou seus dias:
Imitemo-los também, meu caro Armindo!
Poesias de Américo Elísio. Org. Sérgio B. Holan-
da, 1946.
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. José Bonifácio (O velho e o moço). Lisboa: Livrarias Arlaud e Bertrand, 1920. 298 p. (Antologia Brasileira organizada por Afrânio Peixoto e Constâncio Alves ) 12x18 cm. Capa dura. Ex. bibl. Antonio Miranda.
ODE
À POESIA
Em 1785
Não os que enchendo vão pomposos nomes
Da Adulação aboca;
Nem canto Tigres, nem ensino a Feras
As garras afiar e o agudo dente:
Minha Musa orgulhosa
Nunca aprendeu a envernizar horrores.
Génio da inculta Pátria, se me inspiras
Aceso Estro divino,
Os pórfidos luzentes não me roubam
Nem ferrugentas malhas, que deixaram
Velhos avós cruentos:
Canto a Virtude, quando as cordas firo.
Graças às nove Irmãs ! meus livres cantos
São filhos meus e seus !
A lauta mesa de baixela d'ouro,
Onde fumegam séculos manjares,
Do vulgo vil negaça,
Mal comprados louvores não me arranca.
Divina Poesia, os alvos dias,
Em que pura reinavas,
Já fugiram de nós. — Opacas nuvens
De fumo os horizontes abafando,
A luz serena ofuscam,
Que sobre o Velho Mundo derramaras.
À sede d'ouro, e à vil cobiça dados
Os filhos teus (ingratos!)
Nas níveas roupas tuas aljofradas
Mil negras nódoas sem remorso imprimem.
Mascarada Lisonja,
Fome, Baixeza, os venais hinos ditam.
Então que densos bosques e cavernas
Os homens acoutavam,
Pela Musica e Dança acompanhada
Benéfica Poesia a voz alçando,
Do seio da Mãe Terra
Nascentes muros levantar fazia.
Então pulsando o Vate as cordas d'oiro,
A populosa Tebas
Altiva a fronte ergueu, ao som da lira;
E os hórridos costumes abrandando
A sentir novos gozos
Aprende a feroz gente bruta e cega.
Assim Orfeu, se a doce voz soltava,
Os êuros suspendidos,
O Rio quedo, as Rochas atraía:
E os raivosos Leões e os Ursos feros
Manso e manso chegavam
A escutar de mais perto o som divino.
O Selvagem que então paixões pintava
Com uivos e com roncos,
Pelas gentis Camenas amestrado
Os ouvidos deleita, a língua enrica,
E com sonoro metro
Duráveis impressões grava na mente.
Oual a tenra donzela branca e loira
Da Páfia Deusa inveja,
Os olhos cor do céu, vermelha a face,
O peito faz sentir, que não sentia:
Assim Musas divinas,
Corações bronzeados ameigavam.
Entre os frios Bretões, e os Celtas duros
Reinaram as Camenas:
De pó, de sangue, de ignominia cheios
Mostra os vencidos Ossian à Pátria;
E a frente coroando,
Canta os triunfos, canta a própria glória...
Qual das aves a mágica harmonia,
Que a primavera canta,
Assim teus feitos, grandes e sublimes,
No dia da vitória hercúleo Fingal,
Teus Bardos celebravam,
E a testa sobrançuda desfranzias.
Soberbos templos teve, teve altares
Na Grécia a Poesia.
Génios brilhantes l Sois antigos Vates
Os sociáveis nós, úteis e doces,
Humanos apertaram:
Simples, e poucas, sábias Leis fizeram.
A frente levantar não se atrevia
O Fanatismo férreo;
Co'a gotejante espada dos altares
Arrancada, vermelho sangue quente,
Que lagos mil formara,
Dos próprios filhos não vertia a Terra.
Nem absurda calunia perseguia
A razão e a virtude...
Se a Terra via, via heróicos crimes.
Tu Monstro horrendo, horrendo Despotismo,
Ah ! sobre ti caíram
Acesos raios, que na mão trazias!
Maldição sobre ti, Monstro execrando,
Que a Humanidade aviltas!
Possam em novos mares, novas terras,
Por Britânicas gentes povoadas,
Quebrados os prestígios
Os filhos acoitar da Liberdade !
Então a fome de oiro, mãe de crimes
Negra filha do Inferno !
Não tinha o braço matador armado
Do tirano europeu. A África adusta,
E a doce Pátria minha,
Seus versos inocentes entoavam.
Vós lhes ditáveis, Hehconias Deusas,
Ternos versos chorosos
Do doce amigo morto à sombra ausente l
Outras vezes as vozes levantando,
A glória dos Heróis
Em coroas enérgicas cantavam.
Então nascendo, altíloqua Epopeia
Celebra os Semideuses:
Tal da Grécia recente em alvos dias
A trombeta embocando sonorosa,
Ter fêz a luz Homero,
Que depois imitaste, Augusta Roma.,
Não mil estátuas de fundido bronze,
Nem mármores de Paros
Vencem as iras de Saturno idoso:
Arrasam-se pirâmides soberbas
Subterram-se obeliscos,
Resta uma Ilíada, e uma Eneida resta!
Qual rouca rã nos charcos, não pretendam
Do mim vendidos cantos.
Se a Cítara divina me emprestarem
As Filhas da Memória, altivo e ledo,
A virtude cantando,
Entre os Vates também terei assento.
SONETO (11)
Improvisado na partida para Portugal em 1783
Adeus, flca-te em paz Alemã amada,
Ah sem mim sê feliz, vive ditosa;
Que contra os meus pesares invejosa
A fortuna cruel se mostra irada.
Tão cedo não verei a delicada,
A linda face de jasmins e rosa,
O branco peito, a boca graciosa
Onde os amores teem gentil morada.
Pode, meu Bem, o Fado impiamente,
Pode negar de te gozar a dita,
Pode da tua vista ter-me ausente:
Mas a-pesar-da mísera desdita.
De tão cruel partida, eternamente
Na minha alma viverás escrita.
(11) Tinha então o A. 18 anos.
OLIVEIRA, Alberto de. Páginas de ouro da poesia brasileira. Rio de Janeiro: H Garnier, Livreiro-Editor, 1911. 420 p. 12x18 cm Ex. bibl. Antonio Miranda
Inclui os poetas: Frei José de Santa Rita Durão, Claudio Manuel da Costa, José Basílio da Gama, Thomas Antonio Gonzaga, Ignacio José de Alvarenga Peixoto, Manoel Ignacio da Silva Alvarenga, José Bonifacio de Andrada e Silva, Bento de Figuieredo Tenreiro Aranha, Domingos Borges de Barros, Candido José de Araujo Vianna, Antonio Peregfrino Maciel Monteiro, Manoel de Araujo Porto Alere, Domingos José Gonçalves de Magalhães, José Maria do Amaral, Antonio Gonçalves Dias, Bernardo Joaquim da Silva Guimarãaes, Francisco Octaviano de Almeida Rosa, Laurindo José da Silva Rabello, José Bonifacio de Andrada e Silva, Aureliano José Lessa, Manoel Antonio Alvares de Azevedo, Luiz José Junqueira Freire, José de Moraes Silva, José Alexandre Teixeira de Mello, Luiz Delfino dos Santos, Casemiro José Marques de Abreu, Bruno Henrique de Almeida Seabra, Pedro Luiz Pereira de Souza, Tobias Barreto de Menezes, Joaquim Maria Machado de Assis, Luz Nicolao Fagundes Varella, João Julio dos Santos, João Nepomuceno Kubitschek, Luiz Caetano Pereira Guimarães Junior, Antonio de Castro Alves, Luiz de Sousa Monteiro de Barros, Manoel Ramos da Costa, José Ezequiel Freire, Lucio Drumond Furtado de Mendonça, Francisco Antonio de Carvalho Junior, Arthur Narantino Gonçalves Azevedim Theophilo Dias de Mesquita, Adelino Fontoura, Antonio Valentim da Costa Magalhães, Sebastião Cicero de Guimarães Passos, Pedro Rabello e João Antonio de Azevedo Cruz.
ODE AOS BAHIANOS
Altiva musa, ó tu, que nunca incenso
Queimaste em nobre altar ao despotismo;
Nem insanos encomios proferiste
De cruéis demagogos;
Ambição de poder, orgulho e fausto,
Que os servis amam tanto, nunca, ó musa,
Accenderam teu estro; a só virtude
Soube inspirar louvores.
Na abobada do templo da memoria
Nunca comprados cantos retumbaram;
Ah ! vem, ó musa, vem ! na lyra de oiro
Não cantarei horrores.
Arbitraria fortuna, despresivel
Mais que essas almas vis, que a ti se humilham,
Prosterne-se a teus pés o Brasil todo;
Eu nem curvo o joelho.
Beijem o pé que esmaga, a mão que açoita
Escravos nados, sem saber, sem brio;
Que o bárbaro Tapuya, deslumbrado,
O deus do mal adora.
Não ! reduzir-me a pó, roubar-me tudo,
Porém nunca aviltar-me, pôde o fado;
Quem a morte não teme, nada teme;
Eu nisto só confio.
Inchado de poder, de orgulho e sanha,
Treme o vizir, se o grão-senhor carrega,
Porque mal digeriu, sobrolho iroso,
Ou mal dormiu a sésta.
Embora nos degráos de excelso throno
Rasteje a lesma, para ver se abate
A virtude, que odeia — a mim me alenta
Do que valho a certeza.
E vós também, Bahianos, desprezastes
Ameaças, carinhos — desfizestes
As cabalas, que pérfidos urdiram,
Inda no meu desterro.
Duas vezes, Bahianos, me escolhestes
Para a voz levantar a pró da pátria,
Na assembléa geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.
Porém emquanto me animar o peito
Este sopro de vida, que inda dura,
O nome da Bahia, agradecido,
Repetirei com jubilo.
Amei a liberdade, e a independência
Da doce cara pátria, a quem o Luso
Opprimia sem dó, com riso e mofa;
Eis o meu crime todo.
Cingida a fronte de sanguentos loiros,
Horror jamais inspirará meu nome;
Nunca a viuva ha de pedir-me o esposo,
Nem seu pai a criança.
Nunca aspirei a flagellar humanos;
Meu nome acabe, para sempre acabe,
Se para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes.
Morrerei no desterro em terra estranha,
Que no Brasil só vis escravos medram;
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou a justiça.
Valles e serras, altas mattas, rios,
Nunca mais vos verei! Sonhei outrora
Poderia entre vós morrer contente;
Mas não! monstros o vedam.
Não verei mais a viração suave
Parar o aéreo vôo, e de mil flôres
Roubar aromas, e brincar travêssa
Com o tremulo raminho.
O' paiz sem igual, paiz mimoso !
Se habitassem em ti sabedoria,
Justiça, altivo brio, que ennobrecem
Dos homens a existência...
De estranha emulação acceso o peito,
Lá me ia formando a fantasia
Projectos mil para vencer vil ocio,
Para crear prodígios!
Jardins, vergeis, umbrosas alamedas,
Frescas grutas então, piscosos lagos,
E pingues campos, sempre verdes prados
Um novo Eden fariam.
Doces visões, fugi! Ferinas almas
Querem que em França um desterrado morra :
Já vejo o genio da certeira morte
Ir afiando a foice.
Gallicana donzella, lacrimosa,
Trajando roupas luctuosas, longas,
Do meu pobre sepulcro a tosca loisa
Só cobrirá de flôres.
Que o Brasil inclemente, ingrato ou fraco,
Ás minhas cinzas um buraco nega :
Talvez tempo virá que inda pranteie
Por mim com dôr pungente.
Exulta, velha Europa : o novo imperio,
Obra prima do céo, por fado ímpio
Não será mais o teu rival activo
Em commercio e marinha.
Aquelle que gigante inda no berço
Se mostrava às nações, no berço mesmo
É já cadáver de cruéis harpias,
De malfazejas furias.
Como, oh ! Deos ! que portento! a Urania Venus
Ante mim se apresenta? Riso meigo
Banha-lhe a linda bocca, que escurece
Fino coral nas cores.
« Eu consultei os fados, que não mentem
(Assim me fala piedosa a deusa)
Das trévas surgirá sereno dia
Para ti, para a pátria.
O constante varão, que ama a virtude,
Com os berros da borrasca não se assusta;
Nem como folha de álamo fremente,
Treme à face dos males.
Escapaste a cachopos mil occultos,
Em que ha de naufragar, como até agora.
Tanto aulico perverso. Em França, amigo,
Foi teu desterro um porto.
Os teus Bahianos, nobres e briosos,
Gratos serão a quem lhes deu soccorro
Contra o bárbaro Luso, e a liberdade
Metteu no solo escravo.
Ha de emfim essa gente generosa
As trevas dissipar, salvar o império;
Por elles liberdade, paz, justiça,
Serão nervos do Estado.
Qual a palmeira que domina ufana
Os altos topos da floresta espessa,
Tal bem presto ha de ser no mundo novo
O Brasil bem fadado.
Em vão de paixões vis cruzados ramos
Tentarão impedir do sol os raios :
A luz vae penetrando a copa opaca;
O chão brotará flores. »
Calou-se, então — voou. E as soltas tranças
Em torno espalham mil sabéos perfumes,
E os zéfiros, as azas adejando,
Vasam dos ares rosas.
HADAD, Jamil Almansur, org. História poética do Brasil. Seleção e introdução de Jamil Almansur Hadad. Linóleos de Livrio Abramo, Manuel Martins e Claudio Abramo. São Paulo: Editorial Letras Brasileiras Ltda, 1943. 443 p. ilus. p&b “História do Brasil narrada pelos poetas.
HISTORIA DO BRASIL – POEMAS
A INDEPENDÊNCIA E O IMPÉRIO
OS ANDRADAS
ODE AOS BAIANOS
Altiva musa, ó tu que nunca incenso
Queimaste em nobre altar ao despotismo;
Nem insanos encômios proferiste
De cruéis demagogos;
Ambição de poder, orgulho e fausto
Que os servis amam tanto, nunca à musa,
Acenderam teu estro — a só virtude
Soube inspirar louvores.
Na abóbada do templo da memória
Nunca comprados cantos retumbaram:
Ah! vem, ó musa, vem: na lira d´oiro
Não cantarei horrores.
Arbitrária — fortuna! Desprezível
Mais que essas almas vis, — que a ti se humilha,
Prosterne-se a teus pés, o Brasil todo;
Eu, nem curvo o joelho.
Beijem o pé que esmaga, a mão que açoita
Escravos, nados, sem saber, sem brio;
Que o bárbaro tapuia, deslumbrado,
O deus do mal adora.
Não — reduzir-me a pó, roubar-me tudo,
Porém nunca aviltar-me, pode o fado;
Quem a morte não teme, nada teme —
Eu nisto só confio.
Inchado do poder, de orgulho e sanha,
Treme o vizir, se o grão senhor carrega,
Porque mal digeriu, sobr´olho iroso,
Ou mal dormiu a sesta.
Embora nos degraus de excesso trono
Rasteje a lesma, para ver se abate
A virtude que ódio — a mim me alenta
Do que valho a certeza.
E vós também, bahianos, desprezastes
Ameaças, carinhos — desfizestes
As cabalas, que pérfidos urdiram
Inda no meu desterro.
Duas vezes, bahianos, nos escolhestes
Para a voz levantar a pró da pátria
Na assembleia geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.
Porém enquanto me animar o peito
Este sopro de vida, que inda dura,
O nome da Bahia, agradecido
Repetirei com júblio.
Amei a liberdade, e a independência
Da doce cara pátria, a quem o Luso
Oprimia sem dó, com riso e mofa —
Eis o meu crime todo.
Cingida a fronte de sangrentos louros,
Horror jamais inspirará meu nome;
Nunca a viúva há de pedir-me o esposo,
Nem seu pai a criança.
Nunca aspirei a flagelar humanos —
Meu nome acabe, para sempre acabe,
Se para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes.
Morrerei no desterro em terra estranha,
Que no Brasil só vis escravos medram —
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou a justiça.
(POESIA DE AMÉRICO ELISIO – Eduardo e
Henrique Laemmert – Rio de Janeiro – 1861)
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Página publicada em junho de 2009. Ampliada e republicada em setembro de 2014.Ampliada e republicada em abril de 2015. Ampliada em novembro de 2017
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