IZACYL GUIMARÃES FERREIRA
Natural do Rio de Janeiro, reside de novo em São Paulo após 15 anos no exterior a serviço do Itamaraty, como Diretor de Centros de Estudos Brasileiros e Adido Cultural de nossas embaixadas em países hispânicos: Uruguai, Costa Rica e Colômbia.
Entre suas atividades, deu cursos e palestras de literatura brasileira, teve presença em festivais, feiras do livro e encontros internacionais, com apresentações de artes e letras do Brasil, para algumas delas utilizando traduções, próprias, de poetas brasileiros ao espanhol. Preside o Conselho da UBE, União Brasileira de Escritores, entidade para a qual edita a revista “O Escritor”, que dá seqüência ao jornal do mesmo nome, já com 26 anos de história, bem como o portal na web, www.ube.org no ar há vários meses.
Como autor, escreve, traduz e comenta poesia, tendo publicado quinze títulos, entre 1953 e 2003: Os Endereços, A curto prazo, Iniciação, Escalas, Declaração de bens, Retrato falado, Em outras palavras – reunidos em 1980 sob o título Os Fatos Fictícios. Em seguida, saíram os livros Aula mínima, Memória da guerra, Passar a voz, Entre os meus semelhantes, E vou e vamos- águas emendadas, Ocupação dos sentidos e Uma cidade. Os Endereços encerrou, como prêmio de concurso para estreantes, as célebres Edições Hipocampo, de Geir Campos e Thiago de Melo, série de 20 obras impressas manualmente para subscritores, assinadas por alguns dos mais importantes poetas brasileiros do século XX. A curto prazo obteve menção honrosa do Prêmio Governador do Estado de São Paulo, e honrarias de idêntica importância obtiveram os livros E vou e vamos – águas emendadas ( indicado ao Jabuti da CBL) e Ocupação dos sentidos (Casa de las Américas de Havana, Cuba.)
“... alguém que tem realmente alguma coisa a dizer, e que sabe dizê-lo de maneira própria, sobre ser poética.” THIAGO DE MELLO
“... um poeta que tem voz própria e sabe usar o seu idioma com economia e precisão, fazendo-o servir à poesia e não... vice-versa, como é o caso de tantos... Eu também acho que
Viver é conviver de peito aberto / proclamar o mar / contra o silêncio surdo do deserto”.
ÉRICO VERÍSSIMO
Izacyl F. Guimarães (diretor da UBE/SP e editor da revista "O Escritor") ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras referente a 2008.
FERREIRA, Izacyl Guimarães. por enquanto. São Paulo: União Brasileira de Escritores – UBE, [2017]. 104 p. 14x22,5 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
REVELAÇÃO
Vai voltando devagar,
de algum lugar do passado,
sem mostrar o rosto, ainda.
Agora sim, pouco a pouco.
Mas sem me dizer o nome
que tinha ou tem ou teria.
E sem me pedir que dome
a impaciência crescente
de uma lembrança que some
sem a ajuda dessa rima.
Pronto. Frente a tal beleza
não importa mais o nome,
nem o lugar, nem a data.
Foi-se embora aquela fome
de saber, lembrar quem era,
nem o rumo que hoje tome.
Basta lembrar como fomos
quando jovens, num jardim
com flores que já não são,
sem saber quem hoje somos.
GUARDAR O AMOR?
Guardava aquele amor com tanto zelo
que mais lhe parecia ter-lhe medo,
ou só o pressentimento de perdê-lo,
por não saber guardar-se no segredo.
Mal sabia que amar com tal desvelo
é dor que dói mais tarde que mais cedo,
por ser sem fim o fio do novelo
que vai tecendo o amor em seu enredo.
Guardou-se tanto assim que seu modelo
de amor se desmanchou num arremedo.
OUTRO ABRIL
Voltando num abril aquele amor
a dar de novo o gozo de seu corpo,
querendo uma vez mais ter o calor
de abraço e beijo e o mais entre dois sopros,
voltou-se desde um longe e desde um onde
essa saudade vindo disfarçando
a falta que só quer o que se esconde.
E então já sem segredo dispersando
a fome e a sede, fez-se a chama em dois,
iluminando o agora e o seu depois.
De
Izacyl Guimarães Ferreira
NA DURAÇÃO DA MATÉRIA (2001-2010)
São Paulo: Scortecci, 2010
131 p. ISBN 978-85-366-1838-8
"Na Maduração da Matéria" o poeta Izacyl Guimarães Ferreira faz o "estado da arte" de sua poética no que ele, parafraseando Bandeira, elabora a sua "lira dos oitentanos". Com lucidez e maturidade, com sugere o título da obra que comemora seus oitenta anos de poesia e uma vida inteira - seis décadas dedicadas à poesia. Não podia falta um memorialismo (sem retórica) e a metapoesia (sem didatismo, por sorte!). Uma reflexão que é introspectiva na origem e transcendente e solidária no resultado. Os dois poemas a seguir dão as chaves para entender esta etapa criativa do poeta, consigo a si. Admirável. A. M.
PASSADO
O que ficou atrás mas nos alcança
e de repente devora o presente.
Com sua gula insaciável muda
o que foi, perseguindo o que seremos.
Sem ele nada sou, nem me conhece
o mar a que cheguei por outras águas.
Com ele me aproximo do silêncio
que havia antes e haverá depois.
TAREFAS
Saí, primeiro, a recontar vizinhos
— moldagem do cenário do país.
Saí depois a revisar palavras
— tiragens populares dos antigos.
Toquei nos códigos, fugi dos números,
a vida transformou-se entre miragens:
anúncios, desperdícios da linguagem.
Voltei, mais tarde e longe de meus pares,
à ocupação de fabricar imagens:
voltei comigo a mim, numa discreta,
quase anônima letra em vadiagem.
Vou chegando sem pressa nem vontade
ao término da célere viagem,
entregue ao exercício da linguagem.
De
Izacyl Guimarães Ferreira
INICIAÇÃO
POESIA
Capa e uma ilustração de Aldemir Martins
Ilustrações de Tossan
São Paulo: dezembro 1972
Terceira obra de Izacyl, edição do Autor, presumivelmente limitada. O exemplar foi adquirido de um sebo e fora originalmente dedicada a um de nossos maiores poetas... Exempar da Coleção A.M., cedida pelo bibliófilo Oto Reifschneider Dias.
A seguir, um dos poemas do livro:
OS ELEMENTOS
Vou por onde piso, chão.
Areia, pedra, tapete.
Vou por onde penso:
vou nesta canção.
Barro, molde em rotação.
*
Com fios de luz cativa
cai, escorre e se avoluma
na concha da mão.
Transparência ou bruma
sobe por meus pés, é espuma.
**
Desperta os canteiros
num alvoroço de folhas.
Põe na terra um cheiro
de calor ou frio
que respiro, sorvo inteiro.
***
Dessas coisas me alimento
sem sentir, sem pensamento.
Dessas coisas vivo
sem nada perder, tecendo
esse alumbramento.
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|
De
IzacyL Guimarães Ferreira
ANTOLOGIA POÉTICA
São Paulo: Topbooks, 2009
ISBN978-85-7475-177-1
“Uma poesia na qual se expressam as inquietações do pensamento — assim poderia ser caracterizada a maior parte da produção de Izacyl Guimarães Fereira. Uma poesia pensada e, por isso, contida e até mesmo, algumas vezes, severa. Que busca entender o que nos chaega do mundo e o refaz com beleza.” ALBERTO DA COSTA E SILVA
Um poeta extraordinário, que vale a pena ler e reler. O poema “Registro de imóveis” é dos bons! Poderia ter um título alternativo: “Impropriedades”...Agradeço ao autor o envio da obra, com a dedicatória de amigo. A. M.
“frente ao perigo de ficar comigo
à alternativa de ficar sozinho”
PRIMAVERA DE CACTO
Nenhuma flor. Nenhuma aparência
de flor, pro mais noturna e secreta.
Apenas e duramente um cacto,
primavera sem alarde, canto
surdo, de ternura insubornável.
INDAGAÇÕES
Entre o primeiro traço
e o desenho final,
que mão se reconhece
em minha mão plural?
Quando acharei no chão
enxuto da vazante
o que será de sempre
e agora esta distante?
Além do nível raso
que nada me transborda,
em que rocha do acaso
verei por quem que eu cresço?
Quem, ao findar o dia
a minha voz ouvindo,
com a sua me daria
o último endereço?
REGISTRO DE IMOVEIS
o bairro não tem mapa
a rua não tem nome
a casa não tem numero
a porta não tem chave
a mesa não tem pratos
a cama não tem pés
o teto não tem luz
o tanque não tem água
o pai não tem trabalho
o filho não tem vaga
a mãe não tem mais nada
a morte não tem hora
a vida não tem volta
a lista não tem fim
**************************
Reza
Nunca soube, jamais
pude rezar, pedir
além da interjeição,
do desamparo.
Nunca soube falar
à vera e em paz com deus
ou santo amigo meu,
entre as vozes da missa.
Submissa criatura
de chão e mesa e medo,
ainda sem um meio
e um modo de oração,
metade de mim reza
à revelia, rente à terra,
no susto de que é presa
a pouca alma aflita.
( De PASSAR A VOZ)
Guitarreio
Desenhada à maneira
feminina: contornos
de aninhar-se no colo.
Feita de muitas formas,
nela o tom que se queira
encontra as próprias normas.
Maleável madeira,
dedilhada suspira
seu poço um modo solo,
saído sem adornos.
Ou desata caprichos
nas cordas estiradas.
Feixe de nervos, cofre
aberto só aos dedos
que saibam seu segredo,
a guitarra, violão,
acende o corpo inteiro
entre as chamas das mãos.
( De OCUPAÇÃO DOS SENTIDOS)
registro de imóveis
o bairro não tem mapa
a rua não tem nome
a casa não tem número
a porta não tem chave
o teto não tem luz
a mesa não tem pratos
a cama não tem pés
o tanque não tem água
o pai não tem trabalho
o filho não tem aula
a mãe não tem mais nada
a morte não tem hora
a vida não tem volta
a lista não tem fim
De ENTRE OS MEUS SEMELHANTES)
Uma cidade
(excertos)
1.
Uma cidade se faz
onde um rio, uma baía,
um mar a perder de vista,
pela altura protegida.
Uma cidade se fez
sobre um mapa que se lia,
por um sonho de conquista,
para o tempo construída.
Uma cidade capaz
de leveza e solidez.
2.
Essa cidade se fez
como se a terra falasse
e nada ficasse fora
de seu discurso geral.
Essa cidade se faz
da gente que nela nasce
e da que ali se incorpora
de maneira natural.
Essa cidade outra vez
minha paragem fugaz.
3.
Sobre teus mapas, Rio,
tuas plantas, teus guias
— tanta cartografia —,
sob teu céu de estio,
de estrelas nunca frias
— tanta cosmogonia —,
o mapa original,
o mapa originário
e sem desenho igual,
já sem desejo vário:
4.
Um mapa só mental,
onde não passa a ponta
de um lápis, a vogal
de um nome, nem se conta
a distância real
da natureza pronta.
Enquanto mudam ruas,
cores e alturas tuas,
perfeito e sem ajuda
há um mapa que não muda.
(De UMA CIDADE)
Bombardeios
Varavam pela noite amanhecida
sob as constelações
de sóis fugazes.
Varavam pela noite incendiada
ouvindo os animais
em suas jaulas transtornados.
Varavam pela noite ensolarada
galos enlouquecidos pela insônia,
morcegos desvairados por relâmpagos.
Varavam pela noite conflagrada
meteoros desorbitados,
sobre as crateras.
Varavam pela noite calcinada
sob um milhão de sóis sonâmbulos,
ultrapassando as lindes longínquas do pânico.
(De MEMÓRIA DA GUERRA)
Contingente
Celestes e marinhos índigos,
tantos rostos moços sorrindo
nas arquibancadas repletas,
as flâmulas no ar e os claros cânticos,
quantos eram?
Desfilando em coro as bravuras
dos versos arcaicos - avante
camaradas, nos céus da pátria
luzem alto os pavilhões - galhardias,
quantos eram?
Sob as arcadas, junto aos trilhos,
nas estações rodoviárias
e nos tombadilhos, de cáqui,
os brados e as bandeiras drapejando,
quantos eram?
No silêncio geral da noite,
murcho no mastro o estandarte,
de luvas, de botas, de máscaras
na terra de ninguém, sozinhos, quantos,
quantos eram?
(De MEMÓRIA DA GUERRA)
Memória
Assim o teu primeiro dia.
Menos asa do que vôo,
fuga de lírios e aves brancas
sob um grosso céu de chuvas.
Súbito fez-se amor o que era ausência,
impetuosa fúria de diamantes,
ô pulsação de mares entornados!
Onde essa espuma ferve lembro aquela.
Tuas formas hoje serenadas
lembram velas, lembram alvos pássaros
de brisa. Talvez nasça uma rosa
de teus dedos, de teus lábios. Canta
esses calmos rios navegados.
Essa mudança canta. Lembra ainda
o coração seu mar antigo.
(De OS ENDEREÇOS)
Mare nostrum
Esse é um mar que vai, que é ido.
Mais que visto investido, mergulhado
mar de espaço, mar sem margens.
Esse é o mar que foi, que é sido.
Mais que olhado sofrido, navegado
mar de março, mar de viagens.
É o mar que tenho, que é tido.
Mar velho, recebido entre mil ventos,
lenhos, lanças, cruz de panos.
É um mar que leio, que é lido.
Escrito mar medido entre outros verbos,
alta voz de mil arcanos.
Esse mar em que nasço e sou nascido.
Portugal, 1973
(De ESCALAS)
Colagem
Para que se confundam
as cores e os contornos
onde falhe o retoque,
sobre a imaginação.
Porque assim sobrevive
onde a forma afugenta
o assunto e a realidade
na difundida imagem.
(Nas feições fugidias
a indecisão de ser
adia os afazeres
e há brisas de avenidas.)
Para que permaneçam
no avesso da retina
os gestos e os trejeitos
— invertido binóculo.
Porque assim enumera
as máscaras do ofício
que pouco exerce e aflora
navegando currículos.
(Nos olhares domésticos
uma faca passiva
corta rente outra cópia
do composto retrato.)
(De RETRATO FALADO)
Ex-voto
Testemunhasse o barro
meu querer
feito reza
pelas mãos operárias
Consagrasse uma cera
meu poder
dado em prece
aos olhos visionários
Narrasse este metal
o meu ter
numa súplica
os ouvidos atentos
Mostrasse essa madeira
e meu ser
de oração
numa língua imortal
Gravasse aquela pedra
meu viver
concedido
em caminho sem pressa
(De RETRATO FALADO)
FERREIRA, Izacyl Guimarães. Altamira e Alexandria. Apresentação de Antonio Carlos Secchin. São Paulo: Scortecci, 2013. 66 p. 14x20,5 cm. ISBN 978-95-366-3089-2 Col. A.M.
"A mão que descrevia agora escreve./A mente so-
nhadora agora lê." Irresistível convite para que, lendo-o,
nós também nos leiamos, na teia legada desde Altami-
ra, e que, desde então, nos vai incessantemente tecendo,
conforme sinaliza a travessia desta ode ao humano que é
Altamira e Alexandria, culminância do percurso poéüco
de Izacyl Guimarães Ferreira. António Carlos Secchin
1
Um animal que sabe e vai morrer,
esse homem quer ficar na eternidade
Na caverna desenha o que ele vê,
para durar num tempo sem idade.
Mostrando a caça ele prolonga a vida
e é seu destino pintar Altamira.
O homem, esse animal que sobrevive
na imprecisa memória do futuro,
escreve e guarda o mundo que ele viu,
para fugir do silêncio e do escuro.
Contar a história é preservar a vida,
salvar do incêndio sua Alexandria.
2
Caminhar, caminhar e caminhar,
o faro mais atento que o de caça,
os ouvidos no chão para escutar,
os olhos dois faróis além da mata
à procura de um pouso por abrigo
para a fuga, quando espreitam inimigos.
Procurar, procurar e procurar
pelas paragens de guerra o alimento,
dentro do corpo a força elementar
dos músculos no impulso para a frente.
Só há combate e medo pelo mundo
e a vida é curta frente ao breu profundo.
3
O murmúrio das águas e o cantar
dos pássaros, das feras o rugido,
o trovão sobre os pequenos vagidos
das crias, o assovio pelo ar
entre as folhas, os sussurros da chuva,
tudo isso pede o som humano, turvo
ainda, mas princípio de algo mais,
quase música, para além dos pés
e das mãos trabalhando a pele e a pedra
pelos ecos das grutas, e se esvai
entre as fagulhas das fogueiras altas,
já quase a ponto de tornar-se fala.
(Continuem a ler no livro... São 48 poemas.)
Tem razão Paul Valéry.
Não se terminam poemas.
Eles são abandonados.
IZACYL GUIMARÃES FERREIRA
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