HEITOR FERRAZ
Poeta e jornalista, Heitor Ferraz Mello nasceu em Puteaux, França, em 1964.
Ferraz passou a infância em São José dos Campos e, aos onze anos, mudou-se para São Paulo. Jornalista, formado pela PUC-SP, colaborou em diversos jornais e revistas da capital paulista, tendo sido editor de livros. É mestre em literatura pela USP, com dissertação sobre o poeta Francisco Alvim, O Rito das calçadas - a poesia de Francisco Alvim. Foi ganhador da Bolsa Vitae em 2000/2001.
Obras publicadas: Resumo do Dia (antes chamado Couro de Sapo)(1996); A Mesma Noite (1997); Goethe nos Olhos do Lagarto (2001); Hoje Como Ontem ao Meio-Dia (2002); Pré-Desperto (2004) e Coisas Imediatas [1996-2004], uma reunião de todos os cinco títulos do autor . Fonte: Wikipedia
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
OUTROS RESÍDUOS
Fica um par de brincos
em cima da cômoda.
Fica um elástico solto
como retrato, na gaveta.
Fica a marca da cabeça
deitada no travesseiro
(às vezes um fio de cabelo
para restituí-la em silêncio).
Fica a lua — a meia-lua —
que banal comparei
ao seu sorriso (lembra?).
Fica você que caminha.
Seu corpo indeciso muda
e mudo se desmembra.
A MORTE DO VIZINHO
A morte é assim.
Esvaziam sua casa,
levam todos os seus móveis,
o quadro na parede
roubam sua sombra
todo ruído
fica somente
a memória
cativa na janela
se chego em casa.
PAISAGEM
Os lençóis criam
ondulações de mar
armam no espaço do quarto
montanhas barrocas.
Toda uma noite consumida
em que o amor surge
por indecifráveis sonhos
sacudindo esta natureza convulsiva.
O difícil é levantar sozinho.
RESUMO DO DIA
Nenhum recado de morte
que sempre abala
tanto a família.
O mundo perplexo parou
e a vida
oblíqua
preferiu continuar traindo
sem matar ninguém.
MEMÓRIA
(de um poema de Dante Milano)
No rosto do morto,
só olheiras.
O soco do destino,
o sono arrastado,
tudo
como última memória.
Poemas extraídos de ESSES POETAS – Uma antologia dos Anos 90, org. de Heloisa Buarque de Holanda. . Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.
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LUAR
para Armando Freitas Filho
Estava na hora da morte
o mundo constrangido pedia
atirava pedras contra
a parede da memória.
Óculos, xícaras, vasos
dissimulavam o passado cativo.
Muito sensata
a morte repousava
em branca superfície de lua.
MELLO, Heitor Ferraz. Um a menos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 76 p. 12x18 cm. Programa Cultural Petrobras. ISBN 978-85-7577-594-3 Ex. bibl. Antonio Miranda.
&
Barcos de pesca
na linha divisória do horizonte
O hotel avança sobre a areia da praia:
"a degradação da vida social está presente
na simples transferência direta
dos valores individualistas privados
para a esfera pública"
E um bando de gaivotas
revoa com os lençóis brancos
no céu ensaboado
de uma máquina de lavar roupas.
p/ Carlinhos
&
Foi como se o espelho
tivesse memória
— memória do outro
guardada em gavetas
As gavetas da penteadeira
que foi dos meus pais
depois dos meus avós
Diante dele, menino
passei horas inteiras
navegando
Mas agora
ao me ver refletido
nada mais lembra o outro
que num relance se sobrepôs
sem tempo suficiente
para uma nova investida
E como folhas concentradas
odores quebradiços
ficou apenas a impressão
do gesto inacabado.
&
Assim será melhor
esta é a melhor solução
Na busca do precário
é difícil encontrar a melhor solução
São apenas três reais
na casa lotérica
O vidro que me espelha
projeta lá dentro
meu rosto distorcido
Não me parece
que seja assim
a mobília partilhada
a partilha dos horários
O amor
não me parece
estraçalhado na mesa da cozinha
junto ao café
e algumas migalhas de pão
E tudo tão precário
que amedronta.
&
A blusa preta
a calça cinza
uma bolsa vermelha
que ela carregava
nos ombros
o All Star de couro preto
cabelo curto
também preto
de couro preto
é o que resta
Passa sem deixar rastro
o amor estampado
no fundo dos olhos
é apenas um ideal
sem ponto
de sustentação.
TEXTOS EN ESPAÑOL
Versión de Héctor Carreto
CLARO DE LUNA
para Armando Freitas Filho
Estaba en la hora de la muerte
el mundo constreñido pedía
arrojaba piedras contra
el muro de la memoria.
Anteojos, jiçaras, vasos
disimulaban el paso del cautivo.
Muy sensata,
la muerte reposaba
sobre la blanca superficie de la Luna.
Extraído de BLANCO MÓVIL, n. 75. México, DF, Primavera de 1998. “Poetas de Brasil”.
Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil. Ex. bibl. Antonio Miranda
RESUMO DIA
Nenhum recado de morte
que sempre abala
tanto a família.
O mundo perplexo parou
e as vida
oblíqua
preferiu continuar traindo
sem matar ninguém.
RESUMEN DEL DÍA
Ningún recado de muerte
que siempre avala
tanto a la familia.
El mundo perplejo paró
y la vida
oblicua
prefirió continuar traicionando
sin matar a nadie.
(De Resumo do dia (1996))
*
POEMA DE 88
Depois de um filme—
olhos negros— chove na Paulista
O carro espirra a poça
eu dentro desvio a vista
para um ponto anterior—
o mundo não tem graça
As imagens se recompõem
silenciosas até
o entorpecer de carne e ossos
Normalmente do carro
sé acompanho os sinais que
mudam de cor no solo úmido da avenida
e paro —quando vermelho
Normalmente do carro
acompanho só a câmera que desprega
e solta
entre vidros, a direção,
as gotas, o limpador de parabrisas,
entre os olhos que vão e vêm,
vão e vêm as cenas do filme, de mim,
e do amor
que costuma ser perigoso.
POEMA DEL 88
Después de una película—
ojos negros— llueve en la Paulista*
El coche pisa el charco
yo dentro desvio la vista
para un ponto anterior—
el mundo no tiene gracia
Las imágenes se recomponen
silenciosas hasta
el entorpecer de carne y huesos
Normalmente desde el coche
sólo acompanho los semáforos que
cambian de color en el suelo húmedo de la avenida
y puro —estando rojo—
Normalmente desde el coche
acompanho sólo la cámara que despega
y suelta
entre vidrios, la dirección,
las gotas, el limpiaparabrisas
entre los ojos que van y vienen,
van y vienen las escenas de la película, de mí,
y del amor
que suele ser peligroso.
(De A mesma noite (1997))
*Avenida Paulista, principal y céntrica arteria de la ciudad de São Paulo.
*
NOTURNO – 1
O coração não sabe por que pulsa
nem os olhos o que olham.
A noite avança com todo seu peso
esmagando céu e desejos.
Já sem luz,
a noite condensa os contrários.
NOCTURNO - 1
El corazón no saber por qué late
ni los ojos lso que miran.
La noche avanza con todo su peso
aplastando cielo y deseos.
Ya sin luz,
la noche condensa los contrarios.
(De A mesma noite (1977))
*
INSÔNIA
A vida incomoda
este vaso sem flores
fora de lugar
estas vozes
repentinas
— risos, gemidos
altas horas
incomodam
febril armadilha
deixando nos olhos
um duplo incêndio.
INSOMNIO
La vida incomoda
esta jarra sin flores
fuera de lugar
estas voces
repentinas
—risas, gemidos—,
altas horas
incomodan
trampa febril
dejando en los ojos
un doble incendio.
(De A mesma noite (1977))
Página publicada em outubro de 2008, ampliada e republicada em novembro de 2008; ampliada em abril de 2017; página ampliada em dezembro de 2018 |