ELIDE VALARINI OLIVER
Elide Valarini Oliver é poeta, tradutora e ensaísta. Foi professora de Literatura e Estudos Brasileiros na Universidade de Minnesota e agora leciona na Universidade da Califórnia, Santa Barbara, nos Estados Unidos. Formada pela Universidade de São Paulo em Inglês, Francês e Português, escreveu sobre Joyce e Rabelais em sua tese de doutoramento. Como primeiro pós-doutorado, traduziu "O Terceiro Livro" das aventuras de Pantagruel, de Rabelais, com comentários e anotações. Foi Visiting Fellow da Universidade Yale, no departamento de Inglês e Literatura Comparada. E também professora visitante de Oxford. Publica em revistas especializadas nas Américas e Europa.
TEXTOS EM PORTUGUÊS - TEXTS IN ENGLISH
OLIVER, Elide Valarini. Campo ceifado agora. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. 71 p. 14x21 cm. ISBN 85-7388-288-3 “Elide Valarini Oliver “ Ex. bibl. Antonio Miranda
“Os poemas de Élide V. Oliver alimentam-se com frequência da equiparação. Seja que uma representação pictórica motive a palavra, seja que a palavra mova como se descrevesse um quadro.” LUIS COSTA LIMA
FRA ANGÉLICO
A súbita harmonia
constelada.
Rubras faces do espírito
em repouso.
Será que fizeste tudo
isso por Deus, ou
foi a mão, na
devoção do artifício?
O tempo estancou! Teu milagre...
e nele,
a eternidade
das horas calmas cavou
o êxtase do paraíso
aqui e agora.
ECFRASE DO DILÚVIO QUE LEONARDO NUNCA PINTOU
Não são as águas tempestuosas, repentinas tsunamis,
círculos concêntricos de escuridão e horror,
onde corpos contorcidos lutam, em vão,
para manter a cabeça fora d'água, ombros fatigados
que abandonam toras de madeira,
num mergulho final,
uma corrente de crianças sendo engolidas,
em seguida aos pais e mães.
Do desespero ninguém se salvou,
pois nenhum era inocente diante
da deidade vingativa.
Mas o rio de sua aldeia enche,
deixando lama extrema, não o Nilo,
fertilizador — não, à esperança de eternidade.
A colheita se foi, a cabana se foi.
Os passarinhos se congregam numa árvore
onde um jaguar espreita quieto,
— não haverá festim agora;
não à caça, não à fome satisfeita.
Somente a chuva fria dos últimos dias, um monolito,
caindo gota a gota em rocha não porosa.
Até que o choro pelos anéis perdidos,
as fotos perdidas, os últimos pertences,
encharque a pele, inche as veias, afogue os olhos.
Aí vem o bêbado, um palhaço
com andar de marinheiro, na prancha;
Olhe ali! Subindo a escada infinita está o gordo
Comus, desprovido de gargalhada, agora:
— Eu quero! Eu quero! Eu quero!
Atrasem os relógios ou parem a corda,
parem os ventos para que a balança pare,
que cessem os favores, afinal dê contas,
é uma still nature o que vejo daqui;
uma Composição com Homem,
uma natureza morta, afinal.
DROWNING SHELLEY
Para além de si, o oceano iníquo
de águas arenosas quase pântano
ou pedra líquida, vulcânica,
salgada ou insípida.
Para além do amor, o orvalho amaro
de gotas luminosas quase pranto
ou vidro líquido, anímico,
balsâmico ou mortífero.
Para além da dor, o ar solar
de partículas gasosas, quase ôntico
ou lazúli; líquido, extático,
puro ou beatífico, asfixia.
UT PlCTURA
ubi sunt...
Algumas vezes fecho os olhos
e vejo todos nus
como na capela de Michelangelo.
E são todos belos, transformados
por esse fio de tinta,
afrescados em reboco fino,
conduzidos ao céu
eterno!
E são todos nus onde só a nudez
hipostasia.
E estão certos, ali distantes, todos
cobertos pela fina pálpebra.do olho,
quando fecho os olhos,
algumas vezes.
O DISCURSO DOS PÁSSAROS
Pior é o jardim que havia e não há mais,
A Pasárgada da vida que não foi.
Pior é o gato,
O muro de cacos,
A garoa fina dias a fio.
Pior é o moleque do estilingue,
o ladrão de ovos.
Pior é São Francisco que não nos deixou em paz.
Pior é a dor,
a asa quebrada,
o espinho,
a bala.
Voo:
abre-se a asa
envergadura.
TEXTS IN ENGLISH
EKPHRASIS OF THE FLOOD LEONARDO NEVER PAINTED
(for Seamus Heaney)
It is not the tempestuous waters, sudden tsunamis,
whirpooh of darkness and fear
where contorted bodies strive in vain
to keep heads above, fatigued arms
that let go broken beams in a final dive,
a string of children followed, by fathers and mothers
drowning, in desperation,
no one was saved, for no one was innocent
before the vengeful deity.
But the stream of your village overflows
leaving extreme mud, no fertilising Nile
tough, no hopes of eternity.
The crops are gone, the hut is gone.
The birds congregate on a tree
where a cat is sitting still,
but there will be no feast this time;
no hunt of chase, no hunger satisfied.
Only the chilly rain of past days, a monolith,
falling drop by drop onto impervious rock.
Until the longings for the lost rings,
the lost photos, the lost belongings,
douse the skin, soak the veins, drench the eyes,
here comes the drunkard, a clown
with a sailor's gait upon a plank; there, up an unending
ladder goes the fat, a Comus without the laughter:
I want! I want! you want, we want
what is wanting, what we want.
Turn back the clocks or shut them down,
stop all the winds so the scales stand
still, after all, it is a still nature
what I see, from here, a Composition with Man,
a nature morte, after all.
DROWNING SHELLEY
(for Harold Bloom)
Beyond oneself the iniquitous ocean
of sandy waters almost swamp
or liquid stone, volcanic,
salty but insipid.
Beyond love the bitter dew
of luminous drops almost tears
or liquid glass, animic,
balsamic but mortiferous.
Beyond sorrow, the solar air
of hazy particles almost rainbow
or liquid lazuli, ecstatic
pure and beatific, asphixiates.
Página publicada em dezembro de 2014
|