Canto andaluz
De repente o fio se rompe
e ficamos sozinhos
diante da violência do Real
de repente nossos olhos espantados
passam a se abrir
sobre um fim de viagem:
um imenso quadrado branco
onde jazem espalhados
patéticos fragmentos de cristal.
De repente vagas incandescentes de furor e revolta
de pesar e desencanto
explodem e se dissolvem
contra a opaca indiferença do que É
de repente não há mais nada a fazer
nada a dizer
cada novo instante dilacerando o próximo.
De repente os dias e as noites vão passando
enterrando as raízes da dor
depositando suavemente
nossas exaustas emoções
nas profundas cisuras da sombra.
De repente resta apenas nos lábios
o travo desta cinza
esta maré de pedra sobre o peito
resta esta incapacidade de aceitar
o latejar do acaso
resta somente esta mágoa
desesperada e triste
como um canto andaluz.
(Transcrito de No giro dos ventos )
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PENIDO, Egberto. A noite também é um sol. São Paulo, SP: Editora Giordano, 1994. 85 p. 12x18 cm. “ Egberto Penido “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Interrogação
Interrogo o sentido do vento, a distância
das árvores, a direção das ilhas,
interrogo as sombras
que flutuam a cada passo;
interrogo
a hora que aparece ao longe
o branco da poeira
os caminhos vazios até o céu.
Interrogo
meu coração parado em sobressalto
cativo neste estreito espaço,
me interrogo na noite de meu sonho
contra o parapeito
o caminho de volta esquecido
sem ousar gritar.
Sentado na varanda
Sentado na varanda
ouvindo o rumor do vento na noite
imerso
na sombra de caminhos perdidos
sente uma terna amargura
por esta vida
que é sempre a mesma
nunca a mesma.
Azul
Como um velho disco em rotação errada
esfrega os olhos, senta,
acende um cigarro.
Sente de novo o espasmo na garganta,
a garra sobre o peito.
Abre a janela: exausto,
a boca amarga de insônia,
totalmente vazio, fica olhando
o absurdo céu azul.
Foto: https://br.images.search.yahoo.com
PENIDO, Egberto. Rosa de Sal. Poesia. Ilustrações de Mônica Almeida. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986. S. .p. 15, 5 x 23,5 cm.
Ex. bibl. Antonio Miranda, doação do livreiro José Jorge Leite de Brito.
“É poesia no duro, da maior sensibilidade, da melhor feitura, cheia daquele mistério, do reticente e do hermético, que caracteriza a verdadeira obra poética.” PEDRO NAVA
“... de expressão realmente madura...”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Ano Novo
Sobre a fumaça de sua mão
toda a vã agitação do ano anterior:
a vida desaparecendo sobre suas próprias cinzas.
O meio sorriso a mágica confiança
que amanhã
tudo voltará a ser o de sempre
e que irá conseguir se manter flutuando
mais um pouco
contra o vento e a maré.
O meio sorriso
relutante triste resignado
enquanto as rosas explodiam
e sangravam contra o teto.
Dama da noite
Hoje nenhum visitante
os profetas estão cantando longe
em outras encruzilhadas
um fragmento de lua flutua
sobre os mastros
de imaginários navios
entre os ramos de sombra
pequenas luzes tremem
marcando a breve presença humana
no vento
o perfume da Dama da Noite —
salve Mãe dos Sonhos
Mar Turbulento
minha Mãe.
No céu imensas
giram espirais de prata.
Lamento
Por quem chamar
quando a noite
se fecha em concha
as pontes se partem
e tudo fica tão longe
que nada mais importa?
Por quem chamar
quando os homens dormem os deuses se afastam
e órfãos
sentimos no silêncio
bater
o escuro pulso da dor?
Por quem chamar
quando o punhal
risca
lentamente o coração
e a morte voa como um pássaro
atrás de nossos olhos?
Cisma
Sonhando nosso caminho
acreditamos resvalar gentilmente
entre o céu e onda
mas quando a maré se rompe
sobre a aresta do abismo
e o cisma na alma se cria
percebemos a Antagonista aguardando
sobre o escuro lado da luz.
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página ampliada e republicada em fevereiro de 2022
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