DONIZETE GALVÃO
nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, Brasil, em 1955. Publicou Azul navalha ( T.A. Queroz, Editor, 1988), As faces do rio ( Água Viva Editores, 1991), Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o tempo ( Nankin Editorial, 1997), Ruminações (Nankin Editorial, 1999), Mundo mudo ( Nankin Editorial.2003).
Tem trabalhos publicados nos principais jornais e revistas do Brasil, entre eles Folha de S. Paulo, Poesia Sempre, Dimensão, Inimigo Rumor e Cult. Publicou também nas revistas Babel (Venezuela), Blanco Móvil (México), Matérika (México), tsé-tsé(Argentina), Anto(Portugal) e Helicóptero (México/USA), entre outras.
Seixos/Guijarros é uma seleção de poemas de vários livros publicada pela Orpheu Digital na coleção Poetas de Orpheu, dirigida por Angela Pieruccini Boff. O poema Fidelidade foi traduzdo por Reynaldo Jiménez para a revista tsé-tsé 7/8.
Seixos
Invenção do branco
“...all this had to be imagined
as an inevitable knowledge.”
Wallace Stevens
O tanque é o avesso da casa.
A rebarba.
A ferrugem tomando conta da boca.
O tanque é a parenta decaída,
que machuca os olhos das visitas
com suas carnes rachadas.
O tanque é onde se lava o coador
e o pó de café de seguidas manhãs
desenha uma poça de água preta.
Uma arraia-miúda,
ervas e craca e limo,
flora sem -vergonha,
infiltra-se em suas paredes.
À beira do poço,
alguém imaginou copos-de-leite.
Bebendo a umidade,
em verde e branco brotaram.
Reinventados pela distância,
erguem-se vívidos,
mais brancos que o branco,
artifício de vidro.
Recém-nascidos.
Só porque eles existem,
o tanque e seu corpo saloio
foram salvos do esquecimento.
Rumor das águas
Se o Rumor é também um deus,
nas águas dessas grotas é que ele mora.
Nasce, reverbera e estertora.
Rompe estreitos de rocha. Lambe seixos.
Espumas saltam-lhe dos cantos da boca.
Da fricção das águas, surge uma ópera.
Glossolalia divina. Protomúsica.
Que soava desde o princípio
antes da entrada do homem na paisagem.
Recomendações
Ao cavaleiro desencarnado,
com sua égua de gás hélio,
recomendo ouro, prata e chumbo.
No meio do seu caminho,
mero pedregulho transmuta-se
em rocha, penedo, penhasco.
Mínima ponta de agulha fura
sua armadura hiperbovarista.
Nem figos envenenados
sustentam-lhe a fome.
Tudo o que toca some. Evapora.
Ponha os pés no chão,
para que o minério de ferro
neles grude e forme um casco.
Ninguém vai ouvir falar do seu nome.
Escuta o resumo de sua vida:
um espasmo, um sopro que não soa
além da grade de sua casa.
José
“ Ah, Anhangá me fez sonhar
com a terra que perdi.”
( Em O Canto do Pajé, de Heitor Villa-Lobos
e C. Paula Barros)
Grito espremido.
Seixo perfeito,
com sono no leito do rio.
Dito não dito que roça
um céu de ametista.
Onde o fundo
deste poço de granito?
Onde o infinito,
a luz do sol do Egito?
Tampa de pedra
sobre carnes de René.
Olhe ainda que cego,
o reino que já foi teu.
Anel caucasiano
Olha para o anel de ferro
e mantém acesa a lembrança.
Lembra-te dos dez mil anos
no miolo escuro do rochedo.
Lembra-te, depois, da visitante
e do barulho de suas asas.
Lembra-te da humilhação
de revelar o que era segredo.
Lembra-te de tudo
antes que todos se esqueçam dessa história
e, mero acidente geográfico,
reste apenas a montanha de pedra.
As ninfas
As meninas
florescem em músculos e seios e barrigas lisas,
peles de pêssego
maduras aos olhos da cobiça.
As meninas
são miragens de vitrina,
algodão doce de esquina,
infláveis ao vento a paixão.
Tão voláteis, tão escorregadias.
Basta um toque.
E não resta nada em nossas mãos.
Silêncio
De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço de rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.
Os sentidos da pedra
Quem diz sim à pedra
e com gestos exatos
aninha suas arestas
no intervalo das costelas?
Quem ainda sente nela
o odor da pele humana
e vê o sangue pisado
das escaras nos ombros?
Quem não percebe na pedra,
fragmento do cordão umbilical,
o despojo deixado pelos deuses
na luta que inaugura a geografia?
Quem diante dessa força bruta,
batida por séculos de vento,
não ouve aquele primeiro sopro
vindo de onde ninguém tocou?
Parque de ídolos
Os deuses e demônios do desejo
fazem do corpo seu campo de provas.
Gargalham quando, como George Dyer,
inventariamos desgraças no espelho.
Atiçam vontades fora de propósito
para que se exponham dilacerações.
Criam do vazio mulheres de celulóide
que nos tentam como a Santo Antão.
Apontam visões que andam pela rua
para nos humilhar com suas armaduras.
Perdida a aura breve da juventude
o desejo da carne chega à exasperação.
Fidelidade
María Zambrano alumia as palavras.
Amorosamente, vai abrindo trilhas
que conduzem o aprendiz aos picos,
onde se respira o raro ar da poesia.
Ensina-lhe uma lição de fidelidade.
De como buscar o segredo, ossada oculta,
que ganha existência no momento
em que se revela o que antes dormia.
Aprende-se com ela a colher do silêncio,
da solidão que vem desde a infância,
palavras que precisam ser escritas.
Língua solta não apresenta serventia.
A virtude anula vaidades e paixões:
a voz contida fala mais que gritaria.
Solilóquio de Nina Simone
Habitou-me um deus espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado e amargoso.
Fez morada em cada célula.
Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas gengivas.
Lateja nas têmporas e nos pulsos.
Planta arrancada da terra africana,
deita suas raízes fundas de baobá
e traz gosto de lama à boca.
Tem sabor atávico a relembrar
o lodo de que se originou o homem.
Habitou-me um deus exigente,
que me fere e exaspera.
Que espezinha o que eu era.
Que fala o que eu não pensara
e, dizendo-me ao contrário,
faz-me gostar do calvário
que, às cegas, eu criei.
Nomeio que não tem nome:
Raio de Iansã, trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c´est moi
Nina Simone.
[ GALVÃO, Donizete ] LICCARDO, Antonio. Os sentidos da pedra. Curitiba: Fundação Cultural, 2000. Catálogo de exposição de fotografias. Inclui poemas de Donizete Galvão extraídos do livro “Do silêncio da pedra”.
GALVÃO, Donizete. O homem inacabado. São Paulo: Portal Editora, 2010. 80 p. 14x21 cm. ISBN 978-855-63550-05-7 “Finalista do Prêmio Portugal Telecfom 2011 Col. A.M.
Fachada
Logo vai terminar o prazo
para o homem construir sua fachada.
Ele continua em andaimes.
Provisório.
Exibe máscaras cambiantes.
Sua face inconclusa,
sustentada por ferragens,
parece esconder que,
em todos esses anos de obra,
ergueram-se inúteis plataformas
para edificar um escombro.
Uso
O uso dá caráter às coisas
como se o tempo maturasse
em suas moléculas
uma severa arquitetura
A virtude do menos
enobrece a casa
com a sua recusa
de adornos sem serventia.
O que o homem gasta
em suas mãos
adquire a aura
de suas dores.
POESIA SEMPRE. Número 29. Ano 15. No. 29. 2008. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008. Editor: Marco Lucchesi. ISSN 0104-0626. Ex. bibl. Antonio Miranda
Aquém do homem
Os corpos já nascem
em débito.
A dívida consolida-se
como uma couraça
que adere à pele,
contamina o sangue,
sem que haja lugar
para o desejo.
Quando este surge,
irrompe
como uma facada
na jugular
em um beco escuro.
Fachada
Logo vai terminar o prazo
para o homem construir sua fachada.
Ele continua em andaimes.
Provisório.
Exibe máscara cambiantes.
Sua face inconclusa,
sustentada por ferragens,
parece esconder que,
em todos esses anos de obra,
ergueram-se inúteis plataformas
para edificar um escombro.
Um outro homem inacabado
Nesta cidade impermanente,
um homem jamais está inteiro.
Parte perdeu-se em alguma rodovia.
Outra sonha com montanhas,
água de bica, cachoeiras, maresia.
Esta cidade de São Paulo
nunca está arrematada,
corpo sempre em retalhos.
Mutantes arquiteturas
que não penetram nas veias.
Nesta cidade de São Paulo
um homem constrói sua casa
como uma flora amarela
que teima em brotar
em zona de perigo.
Efêmera, como outras,
destinada à demolição.
Casca fina e provisória,
fraca diante das ventanias,
das máquinas e da solidão.
Nesta cidade dividida,
cada homem é estilhaço,
entulho jogado na caçamba
porque há outro na fila
pra ocupar o seu espaço.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Guijarros
Tradução : Lorenzo Pelegrin/Paulo Octaviano Terra
Invención del blanco
“ ...all this had to be imagined
as an inevitable knowledge.”
Wallace Stevens
El estanque es el revés de la casa.
El desecho.
La herrumbre aposentándose en el brocal.
El estanque es la parienta decaída,
que hiere los ojos de las visitas
con sus carnes hendidas.
El estanque es donde se lava el colador
y el polvo de café de seguidas mañanas
dibuja un charco de agua negra.
Una menudencia
(hierbas y roña y fango,
hierbajo rastrero)
se infiltra por sus paredes.
Al borde del pozo,
alguien se ha imaginado calas.
Bebiendo la humedad,
en verde y blanco brotaron.
Reinventadas por la distancia,
se yerguen vividas,
más blancas que el blanco,
artificio de cristal.
Recién nacidas.
Sólo porque existen,
el estanque y su cuerpo rústico
se han salvado del olvido.
Rumor de las aguas
Si el Rumor es también un dios,
en las aguas de las grutas es donde habita.
Nace, reverbera y estertórea.
Rompe estrechos de roca. Lame guijarros.
Le saltan espumas de las comisuras de la boca.
Del frotar de las aguas, surge una ópera.
Glosolalia divina. Protomúsica.
Que sonaba desde el principio,
antes de la entrada del hombre en el escenario.
Recomendaciones
Al caballero desencarnado,
con su yegua de gas helio,
recomiendo oro, plata y plomo.
En medio de su camino,
mero guijarro se transmuta
en roca, peña, peñasco..
Mínima punta de aguja agujerea
su armadura hiperbovarista.
Ni higos envenenados
le sostienen el hambre.
Todo lo que toca desaparece. Evapora.
Ponte los pies en el suelo
para que el minero de hierro
en ellos pegue y forme un casco.
Nadie va a oír hablar de su nombre.
Escucha el resumen de su vida:
un espasmo, un soplo que no suena
más allá de la reja de su casa.
José
“ ¡ Ah, Aña me hizo soñar
com la tierra que perdi !”
( De O canto do pajé,
de Heitor Villa-Lobos y C. Paula Barros )
Grito exprimido.
Guijarro perfecto,
soñoliento en el lecho del río.
Dicho no dicho que roza
un cielo de amatista.
¿Dónde el fondo
de este pozo de granito?
¿Dónde el infinito,
la luz del sol de Egipto?
Tapa de piedra
sobre carnes de René.
Mira aunque ciego,
el reino que ya fue tuyo.
Anillo caucasiano
Mira hacia el anillo de hierro
y mantiene encendido el recuerdo.
Acuérdate de los diez mil años
en el meollo oscuro del peñasco.
Acuérdate, después, de la visitante
y del ruido de sus alas.
Acuérdate de la humillación
de revelar lo que era secreto.
Acuérdate de todo
antes de que todos se olviden de esa historia
y, mero accidente geográfico,
sólo reste la montaña de piedra.
Las ninfas
Las niñas
florecen en músculos y senos y barrigas lisas,
pieles de melocotón,
maduras a los ojos de la codicia.
Las niñas
son ilusiones de vinilo,
algodón dulce de esquina,
inflables al viento de la pasión.
Tan volátiles, tan resbaladizas.
Basta un toque.
Y no queda nada en las manos.
Silencio
De piedra ser.
De piedra tener
el duro deseo de durar.
Pasen las legiones
con sus huesos expuestos.
Lloren los ancianos
con chaquetas de naftalina.
La nave blanca llega al puerto
y tiñe de vino el azul del mar.
El macizo de roca,
de espaldas a la ciudad
siete veces destruida,
celebra el silencio.
La piedra calla
lo que a ella duele.
Los sentidos de la piedra
¿ Quién dice sí a la piedra
y con gestos exactos
cobija sus aristas
en el espacio de las costillas?
¿Quién siente en ella
el olor de la piel humana
y ve la sangre aplastada
en las costras de los hombros?
¿Quién no percibe en la piedra
fragmentos del cordón umbilical,
el despojo dejado por los dioses
en la luchas que inaugura la geografía?
¿Quién, delante de esa fuerza bruta,
golpeada por siglos de viento,
no escucha aquel primer soplo
viniendo de donde nadie llamó?
Parque de ídolos
Los dioses y demonios del deseo
hacen del cuerpo su campo de pruebas.
Carcajean cuando, como George Dyer,
inventariamos desgracias en el espejo.
Atizan voluntades fuera de propósito
para que se expongan dilaceraciones.
Crean del vacío mujeres de celuloide
que nos tientan como a San Antonio.
Apuntan visiones que andan por las calles,
para humillarnos con sus armaduras.
Perdida el aura breve de la juventud,
el deseo de la carne llega a la exasperación.
Fidelidad
María Zambrano alumbra las palabras.
Amorosamente, va abriendo senderos
que conducen al aprendiz a los picos,
donde se respira el raro aire da la poesía.
La enseña una lección de fidelidad.
De cómo buscar el secreto, osamenta oculta,
que gana existencia en el momento
en que se revela lo que antes dormía
Se aprende con ella a tomar del silencio,
de la soledad que viene desde la infancia,
palabras que necesitan ser escritas.
Lengua suelta no presenta servidumbre.
La virtud anula vanidades y pasiones:
la voz contenida habla más que el bullicio.
Soliloquio de Nina Simone
Me habitó un dios espeso.
Sangre color de hígado.
Veneno tallado, macerado y amargo.
Hizo su morada e cada célula.
En los alvéolos, en las entrañas, bajo las uñas.
Se expande por la vena del cuello.
Sangra por las encías.
Late en las sienes y en las muñecas.
Planta arrancada de la tierra africana,
acuesta sus raíces hondas de baobá
y trae gusto de barro a la boca.
Tiene el sabor atávico para recordar
el lodo del que se originó el hombre.
Me habitó un dios exigente.
Que me hiere y me exaspera.
Que pisotea lo que yo era.
Que habla lo que yo no pensaba
y, diciéndome lo contrario,
me hace gozar del calvario
que a ciegas, yo creé.
Nombro lo que no tiene nombre:
rayo de Iansã, trueno, ciclón,
soplo de Orixá, c´est moi
Nina Simone.
Fuente: HELICOPTERO, V.3-4, 2000, Eugene, Oregon, EE.UU. (Los editores
son profesores del Depto. de Lenguas Neolatinas, de la Universidad de Oregon.)
----------------------------------------------------------------------------------------
TEXT IN ENGLISH
Nina´s Simonbe Soliloquy
Translation of Steven White
A thick god inhabited me.
Liver-colored blood.
It made a home in every cell.
Sculpted poison, soaked, brave.
In tooth-sockets, in intestines, underneath the nails.
It distends the vein in my neck.
I bleeds through my gums.
I throbs in my temples anda t my wrists.
A plant torn out of the African earth
it cradles its deep baobad roots
and brings the taste of clay to my mouth.
Ots atavistic savor recalls
the mud where man was born.
A demanding god inhabited me,
who wounds and exasperates me.
Who scorns what I was.
Who speaks what I did not think
and, telling me the opposite,
makes me enjoy the suffering
I bindly created.
I name the nameless:
Iansã´s ligtning, thunder, cyclone,
breath of an Orixá, c´est moi
Nina Simone.
�
From: HELICOPTERO, V.3-4, 2000, Eugene, Oregon, EE.UU. (The newspapers directors are professsors of the Romance Dept. Languages, University of Oregon.)
TEXTOS IN ITALIANO - TEXTOS EM PORTUGUÊS
INCONTRI CON LA POESIA DEL MONDO. ENCONTROS COM A POESIA DO MUNDO. Antologia poética bilíngue. Italiano – Português. Antologia poética bilíngue. A cura di Vera Lúcia de Oliveira; Paula de Paiva Limão. Perugia, Italia: Edizioni dell´Urogallo / CILBRA – Centro di Studi Comparati Italo-Luso-Brasiliani, 2016. 242 p. Em colaboração com o Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade de Brasília. ISBN 978-88-97365-41-9 Ex. bibl. Antonio Miranda
Donizete Galvào ha pubblicato il primo libro negli anni Ottanta del secolo scorso ed è considerato uno dei poeti più originali della sua gene-frazione. Nato a Borda da Mata, in Minas Gerais, nel 1955, ha pubblicato p volumi Azul Navalha (1988), Asfaces do rio (1991), Do siléncio da pedra '(1996), A carne e0 tempo (1997), Ruminapes (1999), Pelo corpo, in collaborazione con Ronaldo Polito (2002), Mundo mudo (2003) e 0 homem macabado (2010), oltre dei volumi di poesia per bambini 0 sapo apaixo-nado (2007) e Mania de bicho (2009). Recentemente sono usciti i libri Wscoiceados (2014) con belle illustrazioni di Carlos Clémen, e il volume antologico Oficios do tempo (2014), entrambi postumi. Laureato in giornalismo, il poeta ha vissuto e lavorato per molti anni a San Paolo, dove è morto nel gennaio del 2014.
Le poesie de Donizete Galvão sono state trado-te in italiano da
VERA LÚCIA DE OLIVEIRA
Night Windows
O quarto está deserto.
Uma das janelas está aberta.
O vento suga a cortina branca para fora da casa.
Alguém está por um fio.
Alguém aposta sua última ficha.
Um corpo cairá no negrume da noite.
Night Windows
La camera è deserta.
Una delle finestre è aperta.
Il vento risucchia la tenda bianca fuori di casa.
Qualcuno è appeso a un filo.
Qualcuno sposta la sua ultima fiche.
Un corpo cadrà nell'oscurità della notte.
A aparição dos objetos
Tirar do ciclo da morte
aquilo que tantos desprezam —
restos, trapos, cordas,
estrados de cama e roupas sujas —
e fazer com que na tela
nova realidade se revele.
Embebidos de tinta,
os objetos em sua humildade
ganham outra manifestação.
Renomeados pelo olhar,
pelas mãos do pintor
estão para sempre
consagrados.
L'apparizione degli oggetti
Togliere dal ciclo della morte
quello che tanti disprezzano -
resti, stracci, corde,
reti da letto e vestiti sporchi -
e fare sì che nella tela
nuova realtà si riveli.
Imbevuti di colore,
gli oggetti nella loro umiltà
acquistano un'altra esistenza.
Rinominati dallo sguardo,
dalle mani del pittore
sono per sempre
consacrati.
O asfalto, enfim
Se toda morte é descida,
a morte mais dolorida
é aquela com o corpo
varado de balas
debruçado
sobre o carrinho de construção
que desce as valas da favela.
Morte de cabeça para baixo
como deveria ter sido a vida
inteira
do moleque teimoso
que à força da bala
quis levantá-la do chão.
L'asfalto, infine
Se ogni morte è discesa,
la morte più penosa
è quella con il corpo
crivellato di proiettili
riverso
sulla carriola del cantiere
che discende i fossi della favela.
Morte con la testa in giù
come deve essere stata la vita
intera
del ragazzo testardo
che a furia di proiettili
ha voluto rialzarla dal suolo.
Depreciação
De hoje em diante
não irás ganhar o pão
com o suor do teu rosto.
Não precisarás mais de rosto.
Nem de suor.
Nem de um corpo.
De hoje em diante
a máquina imperfeita
dos teus músculos
será mais um objeto
em desuso.
Svalutazione
Da oggi in poi
non guadagnerai il pane
con il sudore della tua fronte.
Non avrai più bisogno di fronte.
Né di sudore.
Né di un corpo.
Da oggi in poi
la macchina imperfetta
dei tuoi muscoli
sarà un altro oggetto
in disuso.
Página publicada em novembro de 2007, ampliada e republicada em novembro de 2008. Ampliada e republicada em fev. 2013. Ampliada em julho de 2018. Ampliada em setembro de 2019. |