DANIEL FRANCOY
Nasceu em 1979, em Ribeirão Preto (SP), cidade em que reside atualmente. Graduado em Direito e, desde 2009, é escrevente técnico judiciário do TJ/SP. Publicou em Portugal os livros Em Cidade Estranha (Edições Artefacto, 2010) e Calendário (Edições Artefacto, 2015). No Brasil, estreou com Identidade (Urutau, 2016), um dos vencedores do Prêmio Jabuti na Categoria Poesia, publicou em seguida A Invenção dos Subúrbios, de crônicas urbanas sobre sua cidade (Edições Jabuticaba, 2018) e O Ganges Represado (Urutau, 2019). Participou da plaquete “Vozes Versos” (Martelo Editorial, 2019). Alguns de seus poemas foram traduzidos para o inglês e publicados na revista eletrônica “Saccades” (2019).
Daniel Francoy se insere entre aqueles poetas que tenho buscado pelo ordenamento do poema, por trazer dicção preocupada com o acabamento do texto, a expressão acima da banalidade virtual e de enfrentamento dos desastres impostos pela realidade. Trata-se de um poeta que não se preocupa só com o grito, mas com o ordenamento do som, do muro ou da mudez. E ele se esforça e consegue transformar o existente grunhido do real em poesia. Nota-se que além da fruição e domínio do ato de compor, consegue ordenar a composição, ajustá-la à espacialidade e ao equilíbrio dos significantes. A poesia está carecendo dessa franqueza, dessa energia, sem temer absorção de problemáticas cotidianas. E, sem dúvida alguma, Daniel Francoy chega para preencher uma lacuna da prática da poesia de nossos grandes poeta, tais como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. É claro – com uma linguagem e uma poética ajustadas ao seu tempo.
(Salomão Sousa).
Poemas do livro Identidade:
CLARIDADE
Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D’Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem – é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito –
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.
AUTORRETRATO
Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.
Poemas do livro O Ganges Represado:
O meu lugar no estado das coisas
Conheço o meu lugar no estado das coisas
e não ouso dizer o sentimento do mundo.
O jardim renovado, os hibiscos em flor
não são o planeta inteiro e tampouco
o meu coração. Antes, são uma mentira
que frutificou melhor do que um poema.
Um simples arranjo de cores, como bananas
num quadro de natureza morta, como células
antigas de dinheiro, tornadas singelas
porque agora nada valem e ninguém
- nem mesmo eu – viverá por elas.
Apenas um modo de sentir ternura,
de talvez pedir perdão, uma maneira
sutil de não se confundir com os assassinos,
uma impotente variação do verbo resistir,
um pacífico modo de calar a boca,
de não gritar, de não se render
ao coração pleno de napalm, de estar
entre vizinhos no país ocupado.
Foram-se pacificamente os nossos mortos
Todos os nossos mortos foram-se
pacificamente: os pais, os amantes,
os índios dizimados, os prisioneiros fuzilados,
os companheiros de medo e ódio,
os atônitos, que o câncer destrói
com método, aqueles que tanto
amávamos, embora raivosos.
Caíram em perfeita harmonia com o dia
como o fruto que se perdeu
por uma maldade dos deuses.
Ainda nas piores horas, jamais pensamos
é chegado o massacre.
E tampouco, otimistas, julgamos:
somos os sobreviventes da matança.
A tarde avança sem fraturas e se corvos
voam em torno do sol
é o cortejo de uma carcaça anônima.
Poema claro
Há inevitalmente, em qualquer período
entre catástrofes, uma noite de chuva boa.
O trabalho termina mais cedo e pensamos
ainda ontem tudo era cálculo, sordidez
e sangue, mas agora a paz respira amplamente.
Ainda há, inevitavelmente, o amor
que ainda se ergue, que ainda caminha
como um animal sem medo dos relâmpagos.
Página publicada em dezembro de 2019
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