CLÁUDIO FELDMAN
Poeta, escritor e roteirista, professor aposentado de língua e literatura. Polígrafo!!!
Cruzei com o notável Cláudio Feldman uma única vez, nos idos de 1978, em Santo André, São Paulo, ocasião em que ele me dedicou um exemplar de seu livro “O rapto da mulher barbada”. Agora o reencontro na revista Ângulo que publica nossa amiga Olga de Sá, lá em Lorena, SP, estampado em forma de poema, que transcrevo para os nossos leitores. Cláudio é um talento ímpar, prolífico, versátil, divertido, criativo. Merece os adjetivos. Também trouxemos dois hai-kais dele do Jornal de Poesia. ANTONIO MIRANDA
ÁGUA CLARA
Que buscas, água clara dos caminhos.
Se os pesadelos do céu, multiplicados,
Ensangüentam seus dentes, e é teu canto
Nosso único jardim contra a loucura?
Que buscas, água clara dos caminhos,
Com teu fundo sabor de origem fria,
Se, forma sem forma, teu passado negas,
Quando sólidas pedras te geraram?
Que buscas, água clara dos caminhos.
Presa aos ritos da pressa, nos abismos
Onde os mortos turvam teus lençóis de linho?
Que buscas, água clara dos caminhos,
Quando as panteras da noite se conjuram
E dança em ti o luar desatinado?
Haicai
Seca
Corvos
Nos galhos curvos:
Únicas folhas.
Dia Lento
Dia lento:
Um velho cavalo
Subindo a encosta.
FELDMAN, Cláudio. Espelhos da chuva. Haicais. São Paulo: Editora Taurana, 2011. 18 p. ilus Concepção gráfica: Ideografia. Formato 12x19 cm. Col. A.M. (EA)
barcos de papel
só podem levar
à infância
mata quase nua
um sabiá
canta o outrora
a bailarina
reflete seus gestos
em mil lantejoulas.
FELDMAN, Cláudio. Photoprovíncias. São Paulo: Editora Taturana, 2011. 82 p. Capa: foto de Heitor M. Moreira. Projeto gráfica: Ideografia. Impresso pela Bartira Gráfica.
16-apiahy-guassú
ternos gravatas
e bigodes parnasianos
posam
ad vitam aeternam
no retraio sépia
a inauguração
da câmara municipal
foi o clímax
de 1912
no planeta
conforme os olhos da photo
17-fazenda lux
cará inhame
mangarito e batata doce
são haveres suínos
na fazenda lux
espinhos de arame
impedem que famintos
disputem o banquete
com inflados porcos
De
FELDMAN, Cláudio.
Campos de algodão. Haikais 2006.
[São Paulo] Editora taturana, 2006?
30 p. 10x18 cm. Ilus.
Cláudio Feldman se apresenta sempre em edições incomuns, e sua poesia também. Experi-menta. Escapa do literal, surpreende pelo inusitado. É o caso de seus haicais. Escapam do meramente descritivo, daquela tradição de reproduzir imagens e incitar sentidos. Informa que apenas “seguiu o exemplo de contensão e visualidade do haikai”. Ele desvela e revela paisagens imaginárias como plástica verbal ao alcance do olho.” ANTONIO MIRANDA
minha sombra
espicha-se
como a tarde vazia
*
o burrinho
escoiceia a sombra
até cansá-la
*
no arame farpado
caminha uma formiga
qual significado?
*
o canto do grilo
atravessa enxuto
o riacho
*
campos de algodão:
nuvens e nuvens
atadas ao chão
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PAÍXÃO
Como alguém que abandona os sapatos
Para andar sobre brasas
Me entreguei à paixão com júbilo feroz
E o alento da amada foi o meu:
Nossas peles gêmeas
Venceram o opaco silêncio do mundo.
Hoje, que as nossas veias se apartaram,
Já não somos os mesmos: mas o eco
De nosso amor alumbrado de carícias
Ainda estremece as ruas solitárias
Com a secreta brisa de bailantes primaveras.
ORDEM
Depois da orgia noturna
Os lixeiros
Varrem máscaras
Detritos
Esperma e folhas
E recompõem
A ordem universal
Até que desce a noite
Novamente
E os cadáveres bóiam nos rios
(de Tempo de Deserto, 1988)
Extraído de SEDUZIR PARA A POESIA. Trajetória do Grupo Livrespaço 1983-1994. Organizadora Dalila Teles Veras. Santo André, SP: Alpharrabio Edições, 2008.
ISBN 978-85-88014-48-0
Página ampliada e republicada em janeiro de 2009
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