CLÁUDIO FELDMAN
Poeta, escritor e roteirista, professor aposentado de língua e literatura. Polígrafo!!!
Cruzei com o notável Cláudio Feldman uma única vez, nos idos de 1978, em Santo André, São Paulo, ocasião em que ele me dedicou um exemplar de seu livro “O rapto da mulher barbada”. Agora o reencontro na revista Ângulo que publica nossa amiga Olga de Sá, lá em Lorena, SP, estampado em forma de poema, que transcrevo para os nossos leitores. Cláudio é um talento ímpar, prolífico, versátil, divertido, criativo. Merece os adjetivos. Também trouxemos dois hai-kais dele do Jornal de Poesia. ANTONIO MIRANDA
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL. Ano 3, No. 6 jul./dez., 2021. Diretor Flavio R. Kothe. Brasília, DF: Editora Cajuína/Opção editora, 2021. 146 p. ISBN 2674-84-95
O VENDAVAL
Até quando SENHOR tu serás neutro
e estarás assistindo a tudo isso
[como um puro espetáculo?!
ERNESTO CARDENAL (“Salmos”)
De par a para as portas do Inferno
Se escancaram
E cospem um vendaval
Com o escuro bafo do Cão:
De Tebas a Taubaté
De Nova Iorque à Índia
Suas desgrenhadas cães se agitam.
O vendaval
Arranca as vestes das florestas
Como um sexomaníaco
Sua alma raivando
Ecoa até nas submarinas plantas
Nos afogados
Com os dorsos plenos de algas
O vendaval
Sem encantos no rosto áspero
Conquista férreo os ares
Suas redes colhem o horizonte
Fende braços domadores
Como uma palha
Nada detém o frenesi
O vendaval
Não aceita subornos salamaleques
Desdenha honras e franjas douradas
Seu único fim é romper
O que estiver entre o nariz
Sua impiedade não tem sócios
Como os humanos
O vendaval
Sobrepaira este poema E promete
expulsar a estrela da manhã
Dos olhares
E assinar com letras sangrentas
Nosso the end
Mas onde está seu Inimigo mais agudo?
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL. Ano 2, Número 3, jan./jun. 2020 Brasília, DF: Editora Cajuína,
2020. 124 p. Presidente: Flavio R. Kothe. ISSN 2674-8495
O Ladrão
Os peixes deste rio
São excrementos
As árvores
Caminham para a guilhotina
O céu azul
Põe um traje de fumaça
A fauna é perseguida
Por taxidermistas
Barulho
Não há rouxinóis em S. Paulo
Por isto meus ouvidos transbordam
De buzinas gritos ranger de indústrias
Músicas relampejante e britadeiras
Dia a dia se esquivam
As muros profundos do silêncio
As melodias outonais os diálogos à meia-luz
Felizes os surdos que se isolam
De tanto verbo inútil no pó das ruas
De mil mensagens hipócritas em busca de ouro
Saturno devorou seus filhos
O som estridente de S. Paulo
Está carcomendo meus ouvidos
Noite Minguante
Noite de quarto minguante
Um inseto passa zunindo
Por minha calva lustrosa
Ainda bem que não é
Alguma bala perdida
Da barbárie citadina
Na esquina o bicho me troca
Por uma lata de lixo
Lotada de consistências
Cada um procura o que importa
o inseto já encontrou
Eu hesito entre vias do talvez
Hospício Na Chuva
A chuva repentina criou um ambiente
Que lava de luz quaisquer espaços sujos
A interna acompanha da vidraça e música
Suave anestésico à sua mente em fuga
Fantasmas
Fantasmas não deixam pegadas
Com as folhas de outono
Que mortas marcam o vento
Ou se inserem em vestes
Como amores do passado.
Mariposa
A mariposa negra entrou no quarto
E foi expulsa com temor de infortúnio
A mulher que a deserdou ignorava
Esta fração de seu jardim noturno
Sótão
1
No sótão
De coisas mortas
O silêncio vive
Sem corte
2
A aranha tocaiada
Na teia
É taciturna
Como a poeira
3
O manequim
Plagia um homem
Mas não consegue
A sua fala
4
Cartas de amor
Atadas por fitas
Levam palavras
Hoje sem eco
5
O gramophone
Com voz de Caruso
Não tem mão rugosa
Que o desperte
6
Um pássaro no teto
Talvez ecoe aqui
Mas não muda
A mudez mumificada
Rostolândia
(À minha filha Fani)
No rosto da atriz
Movediços mosaicos
De um caleidoscópio
Outras faces
Como películas de uma cebola
Há feições de um ditador
Que bombardeia uma creche
Sorrisos abertos
Qual um bosque de cerejas
Olhares de ocaso
Onde a noite
Penetra no mundo
Um colar de criaturas
Num só pescoço
Resistência
Mesmo com mordaça
A palavra transcende
Como o rio
Que flui sob o gelo
As flores campestres
Resistem à névoa
Que vela seus rostos
Emitindo perfumes
O homem que canta
Reage aos império
E talvez acorde
O orelha dos surdos
O Viúvo
Na cama
Meus olhos vigilantes
Escavam o escuro
Em busca de teu rosto
Mas ele já pertence
A uma sombra
[maior
ÁGUA CLARA
Que buscas, água clara dos caminhos.
Se os pesadelos do céu, multiplicados,
Ensangüentam seus dentes, e é teu canto
Nosso único jardim contra a loucura?
Que buscas, água clara dos caminhos,
Com teu fundo sabor de origem fria,
Se, forma sem forma, teu passado negas,
Quando sólidas pedras te geraram?
Que buscas, água clara dos caminhos.
Presa aos ritos da pressa, nos abismos
Onde os mortos turvam teus lençóis de linho?
Que buscas, água clara dos caminhos,
Quando as panteras da noite se conjuram
E dança em ti o luar desatinado?
Haicai
Seca
Corvos
Nos galhos curvos:
Únicas folhas.
Dia Lento
Dia lento:
Um velho cavalo
Subindo a encosta.
FELDMAN, Cláudio. Espelhos da chuva. Haicais. São Paulo: Editora Taurana, 2011. 18 p. ilus Concepção gráfica: Ideografia. Formato 12x19 cm. Col. A.M. (EA)
barcos de papel
só podem levar
à infância
mata quase nua
um sabiá
canta o outrora
a bailarina
reflete seus gestos
em mil lantejoulas.
FELDMAN, Cláudio. Photoprovíncias. São Paulo: Editora Taturana, 2011. 82 p. Capa: foto de Heitor M. Moreira. Projeto gráfica: Ideografia. Impresso pela Bartira Gráfica.
16-apiahy-guassú
ternos gravatas
e bigodes parnasianos
posam
ad vitam aeternam
no retraio sépia
a inauguração
da câmara municipal
foi o clímax
de 1912
no planeta
conforme os olhos da photo
17-fazenda lux
cará inhame
mangarito e batata doce
são haveres suínos
na fazenda lux
espinhos de arame
impedem que famintos
disputem o banquete
com inflados porcos
De
FELDMAN, Cláudio.
Campos de algodão. Haikais 2006.
[São Paulo] Editora taturana, 2006?
30 p. 10x18 cm. Ilus.
Cláudio Feldman se apresenta sempre em edições incomuns, e sua poesia também. Experi-menta. Escapa do literal, surpreende pelo inusitado. É o caso de seus haicais. Escapam do meramente descritivo, daquela tradição de reproduzir imagens e incitar sentidos. Informa que apenas “seguiu o exemplo de contensão e visualidade do haikai”. Ele desvela e revela paisagens imaginárias como plástica verbal ao alcance do olho.” ANTONIO MIRANDA
minha sombra
espicha-se
como a tarde vazia
*
o burrinho
escoiceia a sombra
até cansá-la
*
no arame farpado
caminha uma formiga
qual significado?
*
o canto do grilo
atravessa enxuto
o riacho
*
campos de algodão:
nuvens e nuvens
atadas ao chão
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PAÍXÃO
Como alguém que abandona os sapatos
Para andar sobre brasas
Me entreguei à paixão com júbilo feroz
E o alento da amada foi o meu:
Nossas peles gêmeas
Venceram o opaco silêncio do mundo.
Hoje, que as nossas veias se apartaram,
Já não somos os mesmos: mas o eco
De nosso amor alumbrado de carícias
Ainda estremece as ruas solitárias
Com a secreta brisa de bailantes primaveras.
ORDEM
Depois da orgia noturna
Os lixeiros
Varrem máscaras
Detritos
Esperma e folhas
E recompõem
A ordem universal
Até que desce a noite
Novamente
E os cadáveres bóiam nos rios
(de Tempo de Deserto, 1988)
Extraído de SEDUZIR PARA A POESIA. Trajetória do Grupo Livrespaço 1983-1994. Organizadora Dalila Teles Veras. Santo André, SP: Alpharrabio Edições, 2008.
ISBN 978-85-88014-48-0
BABEL Revista de Poesia, Tradução e Crítica. Ano IV - Número 6 - Janeiro a Dezembro de 2003. Editor Ademir Demarchi. Campinas, São Paulo
Ex. bibl. Antonio Miranda
porco-espinho
da cratera morta
sai
um porco-espinho
cactomóvel
que afasta
perfume e garras
apalpado
apenas
no dicionário
serpente
a serpente
enrosca-se
para dormir
já é o pesadelo
rede
agonia
de prata molhada
o peixe
nada
o rato
o rato
em seu buraco na erva
não sonha com o universo
epitáfio a uma borboleta
que a terra lhe seja leve
como seu voo
sobre o mundo
formigas
a catedral gótica
o palácio florentino
o teatro barroco
a milépora
I
a milépora
— atenta —
mãe medusa
corta o mar
rebocando seus ovos
II
cospe
dardos letais
nos rapinantes
— filhotes ilesos
atrás das cascas
III
do elefante à pulga
e desta
à célula viva
um carrossel
de gozo e ferida
o caramujo
I
o caramujo
com sua baba
de corcunda
escreve
um lamento
para os rastejantes
II
poucos se excluem
deste poema
moscas
I
a mosca fêmea
gera
numa só estação
um sextilhão
de herdeiros
II
nas cerdas espinhosas
se penduram
o tifo
a tísica
as febres infeccionais
III
mais que moscas
e seus contágios
se propagam
no mapa
as igrejas-pedágios
ÂNGULO no. 78, Cadernos do Centro Cultural Teresa D´Ávila. No. 78 Abril / Junho 1998. ISSN 0101 191 X
Ex. bibl. Antonio Miranda
pastilhas de cianureto
Os seqüestadores brasileiros são
muito sofisticados enquanto um
deles rapta a vítima, os outros 15
tentam rabiscar o bilhete de resgate.
Pode-se medir o nível da cultura
nacional, pelo seguinte fato:
Minerva, deusa da sabedoria, no
Brasil é marca de sabão.
A televisão é mais evoluída do
que o rádio, pois no rádio só
ouvimos bobagens e na TV
também podemos vê-las.
Trabalhar, dignifica; fazer os
outros trabalharem, enriquece.
Deus e o eletrocardiógrafo
escrevem cero por linhas tortas.
O caubói não toma banho
de chuveiro, pois não quer
molhar o chapéu.
Interesse público: nome que
os políticos dão a seus
negócios particulares.
O problema dos 10
Mandamentos é que os
pecados são centenas.
Ditadura: forma de governo
no qual o candidato tem pleno
direito de fazer o que quiser.
Os peixes são mudos,
porque, se falassem,
engoliriam muito água.
Quando o deputado
corrupto pediu veneno de rato
ao balconista, este perguntou:
—Quer que embrulhe ou vai
comer aqui mesmo?
Vaga-lume: mosca a gás néon.
*
Página ampliada e republicada em abril de 2023
*
VEJA e LEIA outros poetas de SÃO PAULO em nosso Portal:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página publicada em janeiro de 2023
Página ampliada e republicada em janeiro de 2009
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