CELSO LUIZ PAULINI
(1929-1992)
Paulista de Jaú, formado em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo. Também dramaturgo, escreveu peças de teatro, algumas em parceria com Antonio Bivar.
Obra poética: O gerifalto (1963); O gerifalto primus et secundus (1979); Vênus no telhado (1988). A obra completa do autor foi lançada em 2001 pela editora Azougue.
o gerifalto (primus)
O amor é nu. É forma e sobressalto.
No azul desta avenida verde-cana
Entre mulher e cão, um lobo e asfalto,
Um gerifalto passeia sua doidice.
A ebúrnea orelha abana. Dizem: "Ama".
Ao gerifalto, pobre, falta-lhe a gama
Comum de converter a viva flama
Em menor chama: flerte de verão.
O pé então falseia. Nariz no chão.
Pela doce coluna vertebral
Um furacão assoma. Entra em coma.
O gerifalto morre. Já não ama.
O gerifalto (secundus)
Sutis demais
Não eram vistas as patas coruscantes
Embora nos desertos interiores
Suas marcas fervilhassem.
Inevitável o enrodilhado da crina
Orgulho da raça
Graça
Febre imortal que aos picos alucina.
Passeava o animal pela campina
Fendendo nuvens com os cornos enristados
E mordiscando ervas encantadas.
Posto que só — último da espécie —
Como um deus em si se refloria
Narcisado nas águas luxuriantes.
Suas ancas, dizê-lo, quase é um crime
Tal o cio, o céu, a fome de suas curvas
Irrompendo na tarde enlouquecida.
O mundo, pobre, em dores renascia
Sem alcançar as veias do pescoço
Que era enxuto, nobre, de altivo porte
— Linha pura e fria —
Talvez um cântaro esclarecido pela morte.
Nenhuma jóia, adorno algum,
Apenas o silêncio envolvia
Como um leve lenço de cambraia.
Sobravam-lhe dentes. Em demasia.
Tão grande o esplendor da superior arcada
Que os olhos ofuscados refluíam.
Um osso
Estava ali exposto
Ao sol
À crua indiferença das três horas da tarde.
Um osso apenas — sem saudade —
Na calçada dos dias — sem remédio —
Um osso sem um cão que o roesse
E feroz o disputasse com alguém
Ou com alguma coisa.
As palavras não se ajustavam ao osso
Nem meus gestos dele compartiam.
Não era uma farsa, era um osso.
Então enlouqueci.
Amor
Eu sei é azul
Azul sereno.
Mas o teu
No meu
Brando olhar
Me põe extremo.
Se acampo
Colho este castigo
Desce ao peito
E calca
O pé do tempo
Deixando sorrateiro
De passar.
E se vires, é força,
Na noite alguma flama
Ou no verde da tarde
Rubor que não se explica,
Saiba: sou eu.
Perco-me em chama
Eu sou o mundo e o pânico
Eu sou quem ama.
Inscrição
Não percas o sentido entre flores
Corre o campo
Colhe amores.
"O dito pelo não dito"
Escreve no teu broquel.
Rápido seja o distrato
Pois sob o azul foi o trato
E o azul é cor infiel.
Vênus no telhado
Não é a vida que me preocupa: é Vênus no telhado.
Onde as pálpebras
onde o umbigo
onde o ambíguo sorriso
em ágil espreita de amor?
Onde?
Em que azuis
por que nuvens
em que ventos?
Etéreas coxas de ontem
sulcam-lhe hoje estrias
e sem lustre o nácar dos dentes
rói um fruto apodrecido.
Não, não é o vapor da madrugada
que nos afoga.
São chaminés
apitos
fumo de fábricas
e alergia nos brônquios irritados.
Ainda assim (por Zeus!) é Vênus no telhado:
divina
– posto que suja –
quase indiferente
e os transparentes véus
tão encardidos.
pauvre paradis
O verde das margens, invicto.
O sangue perfila um a um todos os desregramentos,
ou se quiserem, o Paraíso.
Mas de passagem... de passagem...
pois, inelutável, o barco avança
e para trás – espumas –
só imagens.
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De ANTOLOGIA POÉTICA DA GERAÇÃO 60. ÁLVARO ALVES DE FARIA; CARLOS FELIPE MOISÉS, organizadores. São Paulo: Nankin Editorial/ Instituto Moreira Salles, 2000.
Dávamos as mãos
Dávamos as mãos
como se a abstrata figura
tivesse a carne madura
para os encontros seletos.
A morte nos conduzia
com mil dedos e cuidados
por vales nunca varridos
pelos miasmas da vida.
A morte falava sempre
de seu horror bem-fundado
pelas formas que se agitam
sob a luz dúbia do dia.
Os mortos perspicazes
Perspicazes são os mortos
com seus ouvidos de cera.
Nenhuma palavra escapa
a sua argúcia doentia:
sussurro de amor ou ditas
ao mais cruel desafeto
ou então as desgarradas
proferidas sob o vento.
E catalogam na sombra
de sua infinita paciência
mesmo os versos mais frios
de nossa humana carência.
Atentos vão derrubando
os mais severos segredos:
o falso orgasmo, este medo,
e uma corrente fria
que detém na tarde em pranto
o gesto que salvaria.
Rios noturnos
Os rios que me fizeram
gastar o precioso tempo
eram rios de pouca monta:
águas baças, modorrentas...
Pelos vazios da noite
chegavam-me a face insone
e suas águas amargas
não prometiam retorno.
Talvez ao mar arribassem
ou, quem sabe, pela noite
em nuvens se dissolvessem.
ANTOLOGIA DOS NOVÍSSIMOS. São Paulo: Massao Ohno Editora, 1961. “Coleção dos Novíssimos” vol. 9. Capa de João Susuki. Ex. bibl. Antonio Miranda
ANIMALIA
Cavalo
O cavalo é sutil. É âmbar na cama,
De umas patas escorre o seu degredo
Enquanto a crina declina como um cisne
E morre no dorso farfalhante.
Relincha por ser. Mas que freio
Doma-lhe os lábios de açafrão
Se a noite açoita cristais que são os negros
Olhos voltados para o chão?
Cão
O cão é uma espécie de mundano.
No latir o cão refaz o cão
E dá-lhe, já que no éter se constela,
A cor sem rumo,
Pois que noturno a caça traz nos dentes
e a fixa imóvel na retina.
Homem
Não pasta. Morde às vezes
Outras vezes manso se declina
Na gama vária de angústia e aflição.
Tem no chão os pés.
Na cabeça estrelas o atormentam
Pois que não sabe (é mártir)
Onde pousa o coração.
SOB A ASTÚCIA DAS ÁGUAS
Sob a astúcia das águas
O nu e adolescente pastor
Tange camélias e peixes.
Um pássaro se aquieta
No ombro do sol
E frutos maduros roçam-lhe a face
Que o cio das pombas
Crava no mel.
O azul do horizonte
Fabrica o seu riso
Com a rosa dos ventos.
E a água dos rios.
AMANTES
Os amantes cavam na secura
O ardor e o poço de mistério
Em que jaz a forma mais perfeita
De sob a vide a máscara dissipar-se.
Os amantes perscrutam em suas asas
Os eternos possíveis e as caras
Volúpias pessoais que os apartem
Do degredo comum de toda a gente.
Os amantes enfim fome não sentem
Mas um dia confessam que o mistério
Perdeu-se em outra terra em outro tempo.
RECUSA
Com que paz a soma destes ângulos
No preâmbulo do verso é quase amores.
Há os que somam, há os que decifram
E cifram mensagens incolores
Na ramagem dos peixes, na aventura
Que o mineral persiste sem encanto
De ar puro sol furtar o seu descante
E o mesmo nos canais subterrâneos
Jogar com a morte para perecer.
E não é tudo negar-se a atais conluios
Porque após mensagem hei de suster,
Com a mesma flama quem mim é só recusa
A vossa glória e ímpio parecer
Que mais parece um ciclo demarcado
De nada amar e nada florescer.
Página ampliada e republicada em setembro de 2009
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