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CARLOS DE ASSUMPÇÃO
nasceu em 23 de maio de 1927 em Tietê/SP. É Advogado militante na Comarca de Franca/SP. Membro da Academia Francana de Letras, tirou o primeiro lugar no AII Concurso de Poesia Falada@, de Araraquara/ SP, em 1982, com o poema Protesto. Em 1958, por ocasião do 701 aniversário da Abolição, recebeu o título de Personalidade Negra, conferido pela Associação Cultural do Negro, em São Paulo/SP.
A RAZÃO DA CHAMA. Antologia de poetas negros brasileiros. Seleção e organização de Oswaldo de Camargo. São Paulo, SP: GRD, 1986. 122 p. 11,5x20,5 cm. “ Oswaldo Camargo “ Ex. bibl. Antonio Miranda
PROTESTO
Mesmo que voltem as costas
às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar
Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar
Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da Pátria
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é?
E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão, tu me desconheces?
Sou eu aquele que se tornara
Vítima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou '
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do país
O que sofrera mil torturas
O que chora inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas se hoje grito não é
Pelo que já se passou
O que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito, meu irmão,
Ë porque depois de tudo
A justiça não chegou
Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
Sou eu, meu irmão, aquele
Que viveu na prisão
Que trabalhou na prisão
Que sofreu na prisão
Para que fosse construído
O alicerce da nação
O alicerce da nação
Tem as pedras dos meus braços
Tem a cal das minhas lágrimas
Por isso a nação é triste
É muito grande mas triste
E entre tanta gente triste
Irmão, sou eu o mais triste
A minha história é contada
Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava
Para uma prisão mais ampla.
Foi um cavalo de Tróia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo.
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada.
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria.
Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade
Irmão, sou eu quem grita
Eu tenho fortes razoes
Irmão, sou eu quem grita
Tenho mais necessidade
De gritar que de respirar.
Mas, irmão, fica sabendo
Piedade não é o que eu quero
Piedade não me interessa
Os fracos pedem piedade
Eu quero coisa melhor
Eu não quero mais viver
No porão da sociedade
Não quero ser marginal
Quero entrar em toda parte
Quero ser bem recebido
Basta de humilhações
Minha alma já está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me fazer calar!
ASSUMPÇÃO, Carlos de. Não pararei de gritar: Poemas reunidos. Capa; Alceu Chiesorin Nunes. Imagem da capa: Ruben Valentim. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 173 p. ISBN 978-85-359-3318-5
Exemplar da biblioteca de Salomão Sousa
MÃE
Noite,
Os anos já pintaram de luar os teus cabelos.
No entanto, tudo parece estar acontecendo agora,
Neste instante.
Noite.
Após tantos anos,
Neste momento,
Vejo tudo diante de mim,
Como se estivesse assistindo a um filme da infância;
Nós, teus filhos, todos pequenos,
O relógio parado na hora de privações,
Tantos sonhos de asas quebradas pelos cantos
De nossa casa pobre, sem conforto;
Tu, mulher ainda jovem, tão boa, tão calma,
Constelação de esperança e ternura,
Inspirando segurança,
Inspirando fé, amor,
Em meio a tantos vendavais.
Noite,
Tua luta foi para nós teu maior ensinamento
Sofrias (hoje o sei), entretanto,
Em nossa presença, nunca uma lágrima
Rolou pelo teu rosto.
Noite,
Desde criança aprendi a amar-te,
Mas só hoje, adulto, sé que vejo, comovido,
As incontáveis estrelas que brilham em teu ser
E que tantos vendavais não conseguiram apagar.
Resistência
Tocai tambores tocai
Não tenho mais medo da morte
Sei que não vou desaparecer
Tocai tambores tocai
Em toda parte
Muitas mãos de ébano
Estão tecendo o destino da raça
Sei que não vou desaparecer
Não tenho mais medo da morte
Não tenho mais medo de nada
Tocai tambores, tocai
Tocai tambores da alvorada
Quinhentos anos
para Ivani L. Marchesi de Oliveira
Não embarcamos no oba-oba
Não vamos por essa rota
Meu irmão negro não
Meu irmão índio não
Meu irmão branco pobre
também não
Não somos idiotas
Estamos cansados
de carregar quinhentos anos
de opressão nas costas
Esta data para nós
é apenas um marco de luta
por um Brasil de cara nova
por um Brasil que a si mesmo se assuma
por um Brasil de cara nossa
em que haja sol pra todo mundo
*
Página ampliada e publicada em março de 2025.
Página publicada em setembro de 2014
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