CANDIDO PORTINARI
(1903-1962)
(Brodósqui SP, 1903 - Rio de Janeiro RJ, 1962). Começou a aprender pintura aos 9 anos, em Brodósqui, ao auxiliar um grupo de artistas na decoração da Igreja Matriz da cidade. Em 1919, já vivendo no Rio de Janeiro, estudou no Liceu de Artes e Ofícios e, posteriormente, na Escola Nacional de Belas-Artes. Lá, foi premiado com a medalha de ouro e uma viagem à Europa, onde travou contato com modernistas que influenciaram sua pintura. De volta ao Brasil, realizou pequenos serviços braçais em troca de hospedagem numa pensão carioca, e seguiu pintando. Produziu a série Os Retirantes, um de seus principais trabalhos, nos anos de 1930. Nas décadas seguintes foi ilustrador de livros, entre os quais A Mulher Ausente, de Adalgisa Nery, e Menino de Engenho, de José Lins do Rego, e produziu obras como os painéis e azulejos da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi laureado com importantes prêmios, como o Prêmio Guggenheim de Pintura, por ocasião da inauguração dos seus painéis na sede da ONU, em 1956. Em 1964 foi publicado seu livro Poemas. Portinari, um dos maiores pintores brasileiros, foi um poeta bissexto; seus poemas, que chamava de ?escritos?, são característicos da segunda geração do Modernismo.
Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/poesia/index
Quanta coisa eu contaria se pudesse
E soubesse ao menos a língua como a cor.
Portinari, 25 de outubro de 1958
Deus de Violência
Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso
Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado
Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo
Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas
No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carrega uma lata
De água! Só há umas gotas — Dá uma só
Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semeando.
O Menino e o Povoado [Não Tínhamos nenhum brinquedo]
Não tínhamos nenhum brinquedo
Comprado. Fabricamos
Nossos papagaios, piões,
Diabolô.
A noite de mãos livres e
pés ligeiros era: pique, barra-
manteiga, cruzado.
Certas noites de céu estrelado
E lua, ficávamos deitados na
Grama da igreja de olhos presos
Por fios luminosos vindos do céu
era jogo de
Encantamento. No silêncio podíamos
Perceber o menor ruído
Hora do deslocamento dos
Pequenos lumes... Onde andam
Aqueles meninos, e aquele
Céu luminoso e de festa?
Os medos desapareciam
Sem nada dizer nos recolhíamos
Tranquilos...
O Menino e o Povoado [Saí das águas do mar]
Saí das águas do mar
E nasci no cafezal de
Terra roxa. Passei a infância
No meu povoado arenoso.
Andei de bicicleta e em
Cavalo em pêlo. Tive medos
E sonhei. Viajei no espaço.
Fui à luta primeiro do que o sputnik.
Caminhei além, muito além, para
Lá do paraíso. Desci de pára-quedas,
Atravessei o arco-íris, cheguei
Nos olhos-d'água antes do sol nascer.
Nasci e montei na garupa
De muitos cavaleiros. Depois
Montei sozinho em cavalo de
Pé de milho. Fiz as mais
Estranhas viagens e corri
Na frente da chuva durante
Muitos sábados. Dava poeira
No trenzinho de Guaivira.
Paco espanhol era meu parceiro.
Vivíamos apavorados com os
Temporais — pareciam odiar
Aqueles lugares...
Vinham ferozes contra as
Sete ou oito cabanas
Desarmadas.
Num pé de café nasci.
O trenzinho passava
Por entre a plantação. Deu a hora
Exata. Nesse tempo os velhos
Imigrantes impressionavam os recém-chegados.
O tema do falatório era o lobisomem.
A lua e o sol passavam longe.
Mais tarde mudamos para a Rua de Cima.
O sol e a lua moravam atrás de nossa
Casa. Quantas vezes vi o sol parado.
Éramos os primeiros a receber sua luz e calor.
Em muitas ocasiões ouvi a lua cantar.
Esmerava-se para aparecer nitidamente
Redonda. Ficava espiando do nosso maracujazeiro.
Surpreendido vendo São Jorge à paisana,
Pensei pedir-lhe o cavalo emprestado.
Não me animei. A lua estava de vestido de
Noiva. Os sinos começaram a badalar.
As gentes acudiam, era a missa do galo.
Os dos sítios do Adão e dos olhos-d'água
Lá estavam desde cedo.
As estrelas baixaram iluminando o lado
De fora da igreja, onde se aglomeravam
As gentes, os cães e os animais de montaria.
O Dragão veio se chegando de chinelos...
O Menino e o Povoado [Sentia-me feliz quando chegava um circo]
Sentia-me feliz quando chegava um circo.
Vinha de terras estranhas.
Todo o meu pensamento se ocupava dele.
O palhaço, montando um burro velho, fazia
Reclame com a meninada acompanhando.
Eu assistia ao espetáculo e apaixonava-me pelas
Acrobatas de dez a quinze anos. Fazia
Planos para fugir com elas. Nunca lhes falei.
Por elas tudo em mim palpitava.
Minha fantasia.
Voltando à vida real, entristecia-me. Não era eu
Um príncipe? Nada disso. Roupas baratas,
Pobreza... Até as flores lá de casa pareciam
Murchas e sem perfume. Só nos achávamos
Bem rondando o circo. Quando partia para outra
Localidade, eu sentia tanta tristeza, chegava ao desespero,
Chorava silenciosamente; desolado ia ver o trem
Passar na direção onde estavam as acrobatas.
Talvez pensassem em mim
O trem seria meu emissário.
Nos encontraríamos mais
Tarde... O tempo deixava pequena lembrança
Até a chegada de outro circo...
Respirar
O filho menor está morrendo
As filhas maiores soluçam forte
Caem lágrimas de pedra. Mãe querendo
Levar menino morto: feio de sofrer, cara da morte
Desolação. Silêncio apavorando
Solo sem fim pegando fogo.
Não há direção. O sol queimando
Embrutece. Cabeça vazia de bobo
Há quanto tempo? Famintos e sem sorte
A água pouca, ninguém pede nem faz menção
Água, água, se acabar, vem a morte.
Estão irrigando a terra? É barulho de água? Alucinação
Que Santo nos poderia livrar?
Reza de velho louco
Deus pode a todos castigar.
Que é que esse menino tem? Está morto.
Capela de Brodósqui com quadro de
Santo Antonio pintado por Portinari.
Foto: Robson Corrêa de Araujo
In: PORTINARI. Poemas: o menino e o povoado, aparições, a revolta, uma prece. Pref. Manuel Bandeira. Nota biogr. Antonio Callado. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964.
SOBRESSALENTE
O mar olha-me dia e noite nos abandonamos
Às vezes, somente por alguns instantes
Assiste minha solidão e ao trabalho
A lua vai subindo em nossa frente
Quando se apresenta nitidamente redonda
Parece concentrar os olhos sobre mim
Em cada banco de pedra há mais de um
Casal de namorados. Nunca vivi assim
Fui diferente; fui sempre sobressalente
Em tudo. O que todos tiveram não tive
Às vezes penso ter vindo por engano.
O material usado para me fabricarem,
lá no infinito, estava destinado a
Realizar folhas de árvore ou... água.
Por que vieste se nada sentes; me
Habituaria a pensar em ti no silêncio
Já eras uma fábula. Não ouves o
que digo. Desconversas sempre.
Quase nada sei de ti e nada
Queres saber de mim.
Sequei como a árvore no campo
O pouco de verde aparenta
Vida. Meus amigos mortos, mais
Vivos e mais estimados.
Só eles me darão vida...
Estão colocados em minha
Memória com as lembranças
De infância—nuvens brancas
Desfilando: cidades
Se movendo. Vou sobrando nada mais
Existe.
Assim sem alicerce vou afundando
No vácuo.
PORTINARI, Cândido. Poemas. O Menino e o Povoado. Aparições. A Revolta. Uma Prece. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1964. 105 p. 16x23 cm. Prefácio de Manuel Bandeira. Nota biográfica: Antônio Callado. Retrato por Luís Jardim. Capa: Bianco. “ Cândido Portinari “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Antonio Miranda na Exposição dos 100 anos no
Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília, set. 2023
Exposição de imagens virtuais da obra de Portinari, com exposição de Café...
Página ampliada e republicada em janeiro de 2009; ampliada e republicada em janeiro de 2015.
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