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 Fonte da foto: www.nankin.com.br/      AUGUSTO BICALHO 
 Luis Augusto Bicalho Kehl, nascido em Campinas,  1953. Aquariano de profissão e arquiteto. Razoável cozinheiro. Poeta às vezes. Geômetra.  Gymnopedista. Inquieto sossegado.   “Sua atuação eclética estende-se ainda à  recuperação de sítios e edifícios históricos, à pesquisa sobre as formas de  ocupação humana da paisagem, a projetos de reurbanização de favelas e trabalhos  de descontaminação do subsolo em áreas ambientalmente degradadas”, é o que diz  do poeta o sítio web da Livraria Resposta. Autor de um livro sobre o “Simbolismo e profecia na fundação  de São Paulo - A casa de Piratininga”...    Augusto  se apresenta como um “inquieto sossegado”. Ou seja: um oximoro. “Poeta às  vezes”. Quem é poeta o tempo todo? “Não me importa ser confuso”, confessa,  pudera! É poeta sim. Encontrei-o numa estante de um sebo em Salvador. Como ele  foi parar lá?  Não importa... Fabio  Weintraub, que entende do assunto, reconhece o contraditório (oximórico): “ Mas  as coisas começam a se complicar quando percebemos laivos de comicidade sob a  gesticulação romântica. (...) Além dos quadrinhos e das histórias de aventura,  há algo de kitsch nas atmosferas do  filme noir, na alternância entre  tangos delirantes e gracinhas bossa-nova”... Entenderam? Nem eu, nem se  pretende. Vale o que ele disse (no livro AS PAREDES CAIADAS – São Paulo: Nankin,  1999):     O ROSTO   Nunca te  vi em meio aos rostos, nem num  sonho, só na multidão, não te  vi passando, nem indo ou vindo, nem ali  — onde não eslavas —, nem no fundo escuro e  escondido da minh'alma.   Nunca te  vi: na verdade talvez fosses  Não mais  que a palmeira à beira-estrada;  talvez  tivesse eu vinte anos e passava; talvez  fosses nada mais que o sol  que eu  lembro iluminando o nada.   É um  instante, urna coisa mágica,  que fica  á margem do que estava; não te  vi, é certo, mas ficavas onde  estiveras sempre, funda, profunda, na recôndita  curva de urna outra vaga.     PERISCÓPIO   Eu, esta  bolha cósmica,  boneco  de encaixar, teia de aranha,  mecanismo  cibernético,  nau de  alguém.   Eu, esta  completude que se ignora,  pletora  cega, submarino russo á deriva,  eu,  grande caminhão de mudança  sem mapa  nem endereço.   Eu, mala  ao pé da estação,  eu, trem  sem trilhos.
 
 PROFISSÃO
 
 Não me importa ser confuso:
 sou roca e fuso. E do que teço
 só conheço
 o fio do palmo que uso.
         BICALHO, Augusto.  As paredes caiadas.   São Paulo: Nankin Editorial, 1999.  64 p.    (Coleção Janela do caos poesia brasileira) Capa e projeto gráfico:  Antonio Kehl. Foto da capa: Antonio Kehl.   Ilustrações: Luis Kehl.   ISBN  85-86272-13-7  Col. A.M.     AS GAIVOTAS   Dalgum porto de mim daqui distante,  há anos de onde fiz meu ninho agora,  acaba de zarpar, errante e caridosa,  a última esperança de encontrar-me a rota.   De pé ao pé do cais, sobre a amurada, ou na vigia do farol, no atol além da barra, eu vejo indo a escuna certa e o capitão resoluto e olho comovido a ruga honesta na testa do grumete.   Por entre as vagas irão buscar-me a ilha,  a perscrutar os mares com seus olhos de espadartes; piratas chineses ter-me-ão vendido escravo  nos mercados de Alexandria e Goa.   Ainda guardo, hoje, marcada no rosto,  como as mães, a vela no horizonte; a cada brisa atlântica volto o olhar e busco,  entre o azul e as gaivotas, o ponto branco distante.   Mas a parte onde estaria só existe além dos ares  e não há mar que banhe a costa onde arribara.  Do pináculo ao poente, o albatroz aceno  ao barco partindo, um adeus entediado e indiferente.     O PELICANO   O náufrago me estende o braço suplicante,  eu vejo o braço muscular e grimpante,  eu sou o rochedo contra o que bate o mar.   A vaga bravia vai atirá-lo a mim como um troço,  eu lerei o pânico em seus olhos injetados  e em sua boca de esgar.   Minhas arestas, ouriços, corais  lhe cortarão a carne; eu lerei seus últimos pensares: serão para ela.   Eu o verei derreter-se exangue, penedo abaixo, arremessado, arrancado de si, contra a costa surda espedaçado, feliz homem que enxergará sua morte.   Em meio ao mar imenso,  seu rosto aflorará inda uma vez.  E no instante que antecede  o nada, verá esse rosto  sua mente desprender-se  e olhar e ver:   No meio do seio do imenso mundo  um corpo de homem flutuando,  sob um céu indiferente.   Em meu regaço de granito pousado,  eu verei seu nome apagar-se  lentamente, ao ir dos dias.  E seus despojos chamarão  o pelicano.       Página publicada em julho de 2009. Ampliada e republicada em abril de 2013.   
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