ÁLVARO ALVES DE FARIA
(Brasil, 1942). Poeta, ensaísta e jornalista, pertence à Geração 60 de Poetas de São Paulo. Autor de livros como Noturno Maior (1963), Motivos Alheios (1983), Lindas Mulheres Mortas (1990), O Azul Irremediável (1992), Poemas Portugueses (2002), À Noite, os Cavalos (2003), Trajetória Poética (2003), Babel (2007), entre outros.
“Em Álvaro Alves de Faria a escrita vigorosa e contundente não doura a pílula, embora seja capaz de harmonizar a severa denúncia da realidade sem cair nas tentações panfletárias ou ideológicas; como também de decantar o lirismo que há nos amores e nas paixões, sem desviar-se para a pieguice ou o sentimentalismo. Há um trânsito filosófico e onírico ao passar em revista às razões do coração, aos silêncios que muitas vezes dizem mais que as experiências visíveis e flagram o que há de metafísico e mítico na própria vida.(...)
A escritura de Álvaro (Alves de Faria) corrobora aquela perspectiva de que nos falava o saudoso poeta catarinense Lindolf Bell sobre a função provocadora da poesia: “O lugar do poema/é onde possa inquietar”. Na década de 60, após a decretação dos anos de chumbo pela ditadura militar, Faria saiu às ruas para romper amarras e desatar algemas com a única mas feroz arma de que dispunham os semeadores de utopia: a poesia. (...) Por isso, foi admoestado, proibido, enquadrado e detido, ao realizar solitariamente, munido de microfones e alto-falantes, nove recitais do Sermão do Viaduto (foto), tendo sido preso cinco vezes pelo Dops.(...)
Foi um momento epifânico na sua carreira, diria mesmo um divisor de águas. A partir desse episódio, lança-se a um combate sem tréguas, que não tinha apenas motivação política, mas uma atitude permanente de valorização do que é vivo e essencial na arte, sem fazer concessões ao mau gosto, aos modismos, às conveniências de qualquer natureza. Álvaro é um poeta que jamais perdeu sua coerência e vem pavimentando sua trajetória com esse mesmo espírito aguerrido que levava multidões ao viaduto do Chá. (...)
Nos últimos anos, Faria vem publicando seus livros de poesia somente em Portugal. Essa mudança de rumos reflete não apenas uma atitude pessoal de volta às raízes familiares ou à compreensão da carga simbólica de sua ancestralidade lusitana, um influxo altamente proustiano de retomar o tempo perdido; mas, por outro lado, extravasa seu inconformismo diante da solene negligência dos editores, uma maneira também tão peculiar de fugir à insularidade ou à indiferença gritantes – e por que não dizer injusta e criminosa – com que o mercado editorial brasileiro vem tratando os nossos poetas, principalmente os de sua linhagem, cuja contribuição ao panorama da poesia contemporânea brasileira é indiscutível”. (Trechos de A poética do desassossego e da insubmissão, de Ronaldo Cagiano).
“Sua grandeza é a de perenizar na palavra a nossa condoída e frágil condição humana. Simples, inventivo, direto, com a imaginação de fogo e a herança de uma poesia fonética, que nasceu para ser dita e lida em voz alta, na oralidade dos aedos recitadores da Grécia Antiga. As palavras têm alma e só os autênticos e originais criadores como Álvaro Alves de Faria sabem e alcançam esta vida interminável. Os versos guardam a força e o ritmo de quem trabalha na música e na sombra das palavras”. Carlos Nejar
“Do jovem preso cinco vezes por falar poemas no Viaduto do Chá nos tempos da ditadura ao poeta maduro de hoje, fica esta Trajetória Poética testemunhando que nele a vida e escrita sempre se fundiram”. Affonso Romano de Sant´Anna
“Estou aqui, amigos, estou aqui:
e amo entre os escombros.
Eu ressurgi numa ressurreição coletiva
de um enterro coletivo, quando ventava
na planta da vida, e ergui um muro
para olhar do outro lado.
Conheça o blog de Álvaro Alves de Faria, em http://jovempan.uol.com.br/blogs/poeta/ e o programa cômico que mantém no site da Jovem Pan (JP Online Vídeos),acessando http://jovempan.uol.com.br/jp/media/online/ : lá clique em Poeta.
FARIA, Álvaro Alves de. Bocas vermelhas. Poemas para um recital por Taís Brasil. São Paulo: Casa das Rosas, 2006. 20 p. 12x21,5 cm. Col. A.M.
De
TRAJETÓRIA POÉTICA
São Paulo: Escrituras, 2003
NOITE
Melhor é ter um cão
com quem se possa conversar,
especialmente à noite.
Melhor é ter um cão
para em silêncio ser ouvido,
como se palavras não existissem
nem conversas,
nem dizeres.
Com um cão as palavras
são desnecessárias.
Nesta sala vivemos quietos
diante da janela
e isto nos basta.
DESTINO
Meus sapatos
caminham
sobressaltos.
SAPATOS
Sapatos longínquos
como nuvens
tantas voltas dão
em torno de si.
Num mesmo círculo
inertes por ruas incertas
pisam poças derradeiras.
Sapatos de leve aparato
que por guardarem pés sem rumo
rodopiam noites nos saltos
e amarram cadarços antigos.
Saltam de si estes sapatos
pulam olhares
e se perdem
para sempre.
Sapatos de caminhos
decorados
entre a residência e o acaso.
ANDAMENTO
Um corpo
que integre
e a mão
que aparente.
Um dorso
que não se faça
e se acrescente.
Um verso
que não se escreva
nem se sinta.
Um ser
que não se perca
que não se ache
não se pense
que não exista.
VAGAS LEMBRANÇAS
24
Por dentro de mim
onde
não existo mais.
Por dentro
onde não me caibo.
Tão fundo
como se não fosse.
NÃO – 5
Não foi o que vi
antes que a tarde engolisse
o pressentimento.
Os casais na minha mesa
derretem sentimentos.
Beijos loucos alucinam
quartos escuros
nos hotéis que habito
como se fugisse de mim.
Eu não fujo de mim
como me faço parecer.
Eu fujo de meu ser
como me faço sentir.
Comovida é a ave
que morre ávida de si.
Como se morrer comovesse
a sombra que morte significa.
DESTINO
Pior de tudo
é que sempre acreditei
que iria comigo
até o fim do mundo,
ao inferno,
se fosse preciso.
Mas ao lhe pergunta
o que faria no caso de minha morte,
respondeu-me seco e sem comentário
que no dia seguinte
viajaria para Salvador.
De
BABEL
São Paulo: Escrituras, 2007
POEMA 2
Nasce como que palavra aguda
faca que dilacera
corta o corte
o grito corta a palavra
como se fosse assim
nesta manhã ausente.
Como se não fosse essa boca
dentes de esmalte
o lábio louça que se parte.
Nascem como se pulassem da vida
essas imagens de olhos perdidos
essas escamas de peixes imaginários.
Nasce o pensamento nasce o pensamento
nasce o pensamento nasce:
cabeças que não sabem
e percorrem a paisagem do dia.
POEMA 10
O poema atravessa o tempo
como lança que mata
e desfigura a poesia que morre.
O poema é nada
dele nada resta que se possa guardar.
De tantas inutilidades
a poesia e o poema
desaparecem dos livros
esses que mortos
permanecem nas prateleiras inertes
folhas antigas
palavras que se perderam
para sempre se perderam
essas palavras gastas nos poemas
na inutilidade da poesia
POEMA 35
Alguns poetas de digladiam
por um copo de vinho
outros expõem a vaidade num varal
sórdida palavra esta deste poema
a festa segue com cheiro de féretro
das flores que murcham
com o passar das horas.
Se a poesia fosse
não seria essa faca de dois lados
nem o corte seria da ferida
que é o poema
árida elaboração do inútil.
FINAL
Não basta o meu silêncio de um cemitério inteiro.
Fizerem um monumento, esqueceram o nome.
Só.
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De
Álvaro Alves de Faria
MULHERES DO SHOPPING.
São Paulo: Global, 1988.
ISBN 85-260-0208-2
A palavra
O LÁPIS escreve as palavras
esquecidas,
esquecidas as palavras
se negam viver.
O papel se desvenda
em seu mistério de tantos momentos
à espera de uma imagem.
A poesia é bem diferente.
Guarda-roupa
UM TERNO azul vai à festa,
mas amanhã assistirá a um enterro.
Camisas ausentes dormem
em cabides invisíveis.
Gravatas antigas derramam flores
em gavetas distantes.
Palavras não há no guarda-roupa
senão as frases derradeiras
do último dia de escritório.
[ FARIA, Álvaro Alves de ] Vagas lembranças. . Xilogravuras de Valdir Rocha poemas de Álvaro Alves de Faria. São Paulo: quaisquer, 2001. s.p. 12x21 cm. Poemas criados a partir das sugestões das gravuras, conforme informação do autor. Plaquete Impressa por Linear B. Col. A.M. (EA)
3
O homem comum atravessa
o olho de sua morte e nasce
como nascem as aves no outono
e os dias nos calendários.
O homem comum há de ser comum
entre a noite de cal e o oceano
como se assim pudesse se alcançar
tentativa da palavra escassa.
O homem comum
não se surpreende no espelho
e nem se vê
na imagem em que se interfere.
Morre o homem comum
como morrem
as escamas dos peixes
morre na alternativa
de não ser mais.
5
Palavra morta
a boca morta
à palavra morta.
À morte a palavra
que não vive
desperta que está
no tempo
do que não é.
O tempo extinto
na extinta imagem
do tempo vão.
O vão do tempo
no vil do entanto.
O rosto morto
na morta face
a face morta
no rosto mostra
a face imóvel
do rosto inerte.
12
A folha que absorve a terra nesta raiz de muitas
vidas a página que vira o tempo e nele se estende
tardio como as aves nos temporais as bocas
nos apelos e o beijo que corta o lábio como a faca
corta os gomos de uma fruta como o corte
esse corte sempre esse corte por afiada lâmina
por exausta tarde que se exaure por exposto corpo
que voa
voa
voa
a vez de esquecer o ser ausente.
24
Por dentro de mim
onde
não existo mais.
Por dentro
onde não me caibo.
Tão fundo
como se não fosse.
FARIA, Álvaro Alves de. O azul irremediável. São Paulo: Editora Malteses, 1992. 262 p. Capa: Elizabeth Laffayette. ISBN 85-7180-219-X Ex. bibl. Antonio Miranda
“ Gosto muito desse seu jeito de penetrar no cotidiano, despretensiosamente como o Manuel Bandeira, e de lá de dentro sacar o lírico e o patético. A frase corre tranquila, como quem não está dando gravidade ao que fala e, de repente, vem aquele tapa na cara.” AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA
O azul irremediável azul
irremediável irreversível
o azul
completo por inteiro
o azul
que se acrescenta e se multiplica
o azul além do azul
aquém
do homem que aniquila o céu
guarda-chuva que cobre as cabeças
derradeiras
o derradeiro azul
que desaparece na paisagem
do nada.
*
A caneta escreve
palavras azuis
no céu da boca
onde aviões supersônicos
batem nos dentes
que se destroem.
Pilotos saltam de paraquedas
mas morrem afogados
na saliva.
A caneta anota com frases azuis
sem saber exatamente por que
entrou nesta história.
*
A pessoa certa atravessa
a rua com seu terno branco
gravata de seda italiana.
A pessoa certa
executiva de si mesma
atravessa a praça
com sapatos pretos
meias de náilon norte-americanas.
A pessoa certa entra no prédio
recolhe o dinheiro
coloca na pasta
pega o elevador.
A pessoa certa
atravessa o hall
chega à porta giratória.
A pessoa certa
põe o pé na calçada
e cai fulminada
sem saber por quê.
*
Ejaculações noturnas
cheiram desejos
guardados na pele
e fazem
o retrato de um gemido
o gozo
entre o sozinho
e o ninguém.
Os poetas Antonio Miranda, Eunice Arruda e Álvaro Alves de Faria
encontram-se na Casa da Rosas, São Paulo (20/3/2010).
Página ampliada e republicada em maio de 2018 |