A POESIA
A poesia não entra dentro da vala.
A poesia resvala.
A poesia não preenche a ausência.
A poesia é tangência.
A poesia não aporta na lua.
A poesia cultua
à distância porque é ânsia.
A poesia não vence a aporia
que é a própria poesia.
A poesia não ultrapassa o muro.
A poesia é pequena chama
no escuro
que clareia o instante,
arrima o norte, mas daí em diante
tem no seu destino de sombra,
a própria morte.
TEMPO DE DESVÃO
Mornado o renque de estames que conduziu como vagões
minha vida desde o instante que sem pré-consulta vim
aviltar as horas de fados recíprocos e dissonantes,
tenho a sensação de concrescer em linha rumo ao termo;
ao que denoda a passividade que esperei como refúgio
nesta fase anteoutonal cujos medos pulverizam-se em ex-lutas
ao se ter a mescla do não retorno, da fila que impele,
da entrega maciça de perimir , da constatação do ciclo.
É quando a caverna da alma abre o recôndito à mente
e se busca o peremptório lugar no mundo outro
tanto prometido, que por tempos escarnecidos,
surge, chave de um corte inesperado, que se espera
remando em águas furtivas, em posses e desejos
que a cada passo nestes dias, manifestam-se inócuos e frios,
agora com o discernimento a tolher um passado
sonhado, aunado em tentativas da inexistência do amanhã.
É quando temos o tempo fora das nossas amarras,
flutuando em torno, como sombras, desvaneando
amanheceres longe do que denominamos chão.
A MÚSICA
P/ Chet Baker
A harmonia lenta e sofisticada acolhe as notas,
no cúmplice afago desse encontro,
e redunda em parto fluido de paz.
Em muito mais que ouvir, tecer mistério:
ultradimensão do instante capaz
de se imaginar ideogramas
ou apenas um ponto
no absoluto garimpo do silêncio,
que a melodia, paradoxalmente,
me traz.
O momento que não contém verdades.
Que apenas dissipa a sensação da lógica mundana
e promove total isenção do que sondo imperceptível
num último raio de alguma busca insana.
Neste momento simplesmente morro
para qualquer tragédia.
Seja a dos mitos,
seja humana.
DIA DE CHUVA
Tomei minha velha mala
e coloquei objetos.
Os que mais gosto lá foram: o pente
(de osso de javali),
um brigue em miniatura,
um vaso com limpa-viola,
um poema da Francisca Julia,
o mar de chapéu na foto de Tina Modotti,
uma folha de papel-de-seda
com uma lista de vacilos,
que remontam aos tempos do Old Parr.
Um sem número dessas coisas.
Antes de fechar a tampa,
não evitei que minha alma se enveredasse junto.
São ações nesses dias que,
quando acordamos,
sentimos que o destino,
inapelável, insatisfaz.
COLHEITA DOS VENTOS
Não permita que sua existência se molde
como janelas do Vaticano,
nem dê somente frestas
à cota sagrada de sol.
Mantenha além dos sentidos
a atenção a um niama maior
e beba a água de todos os mares
mesmo as últimas gotas de orvalho.
Não queira apenas os figos maduros,
amanhados em jardins redolentes;
há galhos secos
em que a sabedoria viceja.
Enleie a si os desejos do mundo,
coloridos e triunfantes,
mas convide o indevido ao redor,
e dance na noite difusa.
Seja para o sempre um castelo
onde o vento sibila fremente
com toda sua liberdade
doada aos seus poros.
Somente assim, o espírito, já nascido sapiente,
colhe suas flores, e sorri nesta ditosa passagem
por esse minúsculo jardim do universo:
a Vida.
|
De
COLHEITA DOS VENTOS
Ribeirão Preto, SP: Legis Summa, 2007.
“Um lírico impulsivo, mas reflexivo, inquieto, respondendo perguntas não formuladas; ritmado, pulsando até a reiteração da metapoesia.. Acompanho o amadurecimentos do poeta com renovado interesse.” Antonio Miranda
HAIKAI
Um cacho de uva
retém e faz sua refém
a gota de chuva.
CONSEQÜENTE
Não sei de onde vim
e para onde vou me inquieta.
Vivo entre a lógica e a loucura.
Daí, poeta.
ENDEREÇO
Não escrevo sobre a criança
que fui. Nem o alguém que tenho
estado. Não busco os dias claros
nem o tempo obscuro.
Escrevo somente para mim,
que é a quem procuro.
SEM ATRITO
Estar em lugar nenhum.
Alavanca suspensa
Do furor que não se faz.
À medida do estar aflito,
Magoado sem saber, e
desleixado; no desbrio
de existir como marufle
ao mundo. Construtor
de minutos tão iguais,
observados em tiras
de horas e fundos
de arremates amarelos.
Pegar o morto sobre
o pano da ambiversão.
Poemas e ardis
De leitmotiv. Do jogo
para um sem-querer
de outras pequenas ciladas.
Amorfas, costumeiras.
Resolutamente imutáveis.
FOTOGRAFIA 3
O que foi presente em contínuo renascimento.
A fuga obstada pelo papel. Dorian Gray
sem mácula. Posto foi, posto fica.
Rutilante, sonho burlesco
de ser sempre o sempre.
Fora da mente,
na gaveta, no arquivo, como afresco.
Todo agora será o antes.
PSICO-NEOLOGIA
Olhar para dentro de nós,
sem nos arranhar,
quem lá vive florescer
como um novo verbo:
intrar.
ROSSETTI, Alfredo. Luz de alpendre. Ribeirão Preto, SP: Editora Coruja, 2013. 108 p. 11x21 cm. ISBN 978-85-63053-37-0 Col. A.M.
DEFINITIVO
Não escrevo versos
porque me inspiro.
Eu escrevo versos
porque respiro.
LUZ DO ALPENDRE
Debaixo da luz do alpendre
meu pai declamava os versos íntimos.
Com voz de barítono, desfilava a mão
que afaga pela noite festiva
e me confundia quando dizia
que colosso este augusto dos anjos.
Me confundia porque meu entendimento
de poesia era que a palavra poeta
era um sinónimo único para castro alves.
Mas um dia vi umas dentaduras duplas
de um tal drummond
e passei a bater palmas ao meu pai
e dizer baixinho que colosso
são todos estes poetas
e suas palavras entalhadas.
O DENTE
O vazio deixado pelo dente
(caiu sem força)
dói como um nascimento.
Sem ele, outra vida explana
no vértice do tempo.
Chaga de calendário.
Dia inaugural do vandalismo
ao corpo que se esquece
de que tudo precede o movimento
de se escorrer finitamente.
O vazio morde e subverte o espelho
como um suicídio.
CESARIANO
Nasci pelo risco,
à maneira do desvio e do corte.
Com um olhar arisco,
escoei serelepe,
acoitado pela sorte.
ROSSETTI, Alfredo. Voz. Ribeirão Preto, SP: Editora Legis Summa, 2017. 70 p. 26,5x21 cm. ISBN 978-85-8460-027-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
RITOS E PASSAGENS
"No meio do caminho tinha uma pedra" DRUMMOND
salta do papel
como um esquisito corner
atroa ao vento
a palavra-imagem
na lucidez do poema
que luz na aporia
tenta portas e cancelas de dúvidas
nas ultrapassagens
DO AMARGO PASSEIO
crimes e mordaça habitam
placas de ruas/avenidas/praças
onde a pompa de nomes
desvia o caminho da história
escorrem noite e dia
sangue de Serra Leoa
e vísceras da Sardenha
a verdade nos fundos dos mares
rubiáceos
heróis canalhas
indicam endereço e engodo
FUNDAS
sejamos pacientes
com os mistérios da vida
da poesia
do que não há claridade
deixemos os rios se levarem se lavarem
os ventos silvarem
solverem
indagações desnecessárias
sejamos leves
antes que a vida
num instante
nos mostre
o quanto é breve
fendas
fundas podem abrir
aquilo que perde o belo
se a escuridão
finda
e se definir,
morre
RIMA APÁTICA
a utopia dorme e espera o tempo de ousadia
MUSA CONFUSA
a morte só sai de dentro de nós quando chega
RIMA SEM SOLUÇÃO
o futuro mora no escuro
POETOCA
busco-me rebusco-me e nada mais
ROSSETTI, Alfredo. Boca de cena. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2020. 120 p. 21 cm. ISBN 978-85-86139-58- 7
Ex. bibl. Antonio Miranda
"O que há de inexaurível no poeta é fruto de sua capacidade de buscar em si e no outro, via discurso poético, os ritmos variados que compõe a pauta de um estilo concertado, entre certo prosaísmo e decantado lirismo. 0 poeta sente que de certa forma está vencido pela vida, mas aceita o fato de que ela o capacitou para lidar com os eventos da afetividade." OSVALDO FELIX
FUGA
E se o meu verso fugir?
Na pantomima do portão aberto,
Depois da prisão dentro da estrofe
Sem graça, cheia de imagética e forma,
Sair ao respiro da oralidade, no colo
Da moça que o quer na rádio na noite,
Antes dos Sucessos de Sempre.
Correr nos becos em brumas; achar
Seus pares, de pés e ombros forjados
Nas ilusões de copos e meios-fios.
Pedir a benção aos viventes do breu,
Beijar a boca da madrugada única,
Com suas ternuras no seio da canção
Que, desde o Renascimento, a embala.
Sorrir com o sorriso do novo dia
Que traz, não no ventre, posto ser
O próprio ventre, mas nas mãos,
Com cheiro de café e paladar de pão.
Repleta de luminosidade, a aurora
Irá devorar a escuridão que já
Terá ficado presa na história,
Nas sombras e nos cantos de Safo.
Brindar com o Sol que revigora.
Rir farto dos poetas concretos,
Que o disseram findo e vago,
De forma sisuda; dogmas de fé.
(E ele continuou a pular carniça)
Troçar com homens e controles,
Algoritmos e lixos que reinam;
Atletas em busca da medalha
Da ansiedade, e nada de poesia.
A que ele carrega com a alegria
Da língua e olhar de um cãozinho,
Desses que não estão nestas ruas
Nem nas mochilas carregadas
De tudo que é cinzento e plano,
Feitos horizontais, água escorrida.
Mas, sabedor de sua curta duração
E de seu enorme servir, não ousa
Tentar mudar o mundo, apenas
Fazê-lo respirar a quem, com olhos
E falso tino ao chão, chora o espanto
Do ressaibo do terceiro milênio.
Meu verso já sabe que está na hora.
Mas antes dará uma passada em Ítaca,
Fazendo votos de que o caminho seja longo.
Só então, abastecido da Beleza, me chegará.
CHAMAS
Dois amigos amam a lua. Outros dois
São solares. Vários se avermelham
Com a face no azul. Enquanto eles diferem,
Eu me tranco num baú.
Meus anos de vida pesam
E se espalham em mim. Atravesso
Cordilheiras com a mochila abarrotada.
Na memória, um campo pós queimada.
Chamas insistem em não me permitir
Escuridões ou esquecimentos. Dói-me
Constatar que meu tempo é sempre.
DIA DE VIDA
para Konstantinos Kaváfis,
Atende tua porta ao chegarem
Os desejos; inclina para o lado
Do corpo que foi atingido.
Não esqueças de acolher bem
Ao que pode ser a tua Ressurreição.
Espalha ramos no teu tapete
Onde teus sentidos pisam.
Sê o humano da superfície
Da pele que te retrata.
Não Represes tuas fantasias
Por nenhum pensamento
Em todos teus poros, risos,
E em lembranças marcadas,
Como a dança dos colmos
Dos trigais que um dia viste.
Não te resguardes da canção
Primeira que veio a ti pela manhã
E que te envolveu como hera
E te acompanhou até o ocaso,
Que julgavas exausto, mas que
Ao se declinar, retratou no céu
Em sorriso lascivo, com o olhar
Da imaginação, uma rosa tímida.
E quando o sono que te aguarda,
Ruborescer ante teu dia completo,
Entrega-te como criança: abre
Teus braços e corre ao âmago
E júbilo das atividades vitais.
Nesta hora, toda tua substância
Precisará de descanso, diferente
Da tua alma que, assim que iniciares
0 teu fingimento de morte, te velará.
Página ampliada e republicada em novembro de 2017 ;
Página ampliada em novembro de 2020
|