ADEMAR CARDOSO DE SOUZA
Nasceu em 11 de setembro de 1944 na cidade de Fernando Prestes (SP), de onde saiu com 2 anos de idade e só veio revê-la em 1985. De 1946 a 1958 cresceu e viveu entre Jardinópolis e São Joaquim da Barra. Aos 14 anos segue para São Paulo, espaço em que desenvolveu seus potenciais intelectuais e poéticos, cursando História na Universidade de São Paulo e realizando seus "exercícios de invenção poética". Desde 1984 mora na cidade de Ribeirão Preto, onde atua como Delegado Regional da Cultura e Coordenador Geral da Oficina Cultural "Cândido Portinari". Livros de poemas: No coice da noite, Monções, 1977; Jardinovelíssimas, FJ, 1992.
ANTOLOGIA POÉTICA BRASIL-COLÔMBIA (PARA CONHECERNOS MEJOR). Organizadores Aguinaldo José Gonçalves (Brasil) – Juan Manuel Roca (Colômbia). São Paulo: Editora UNESP – Universidade Estadual Paulista; Asociación de Editoriales de Colombia – Asesuc – Universidad de Antioquia, 1996. 217 p. 14x21 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
Curiosamente, não é uma edição bilíngue: os brasileiros em Português e os colombianos em Castelhano.
Os textos de Adernar Cardoso de Souza vêm nesta coletânea para representar uma vertente que cada vez mais tem se pronunciado neste final de século na literatura ocidental, em geral, e na literatura brasileira, em particular. Trata-se de "discursos poéticos" realizados como pequenas narrativas interseccionadas a textos em versos. Esse procedimento que determinou alguns poucos na primeira metade do século (basta que se leiam as "invenções" de William Carlos Williams nos Estados Unidos) torna-se agora uma espécie de consciência formal de muitos artistas de nosso tempo: uma espécie de bifurcação dos géneros ou de "texto anfíbio" que, ao invés de nomeá-los "poemas" ou "narrativas", cai melhor a denominação "texto" como uma forma de pronunciar a nossa própria necessidade de enformar a realidade desse final de século. Técnica do fragmento crispado de lirismo, de prenúncios de tramas e de uma permanente consciência da palavra inventada em nome da busca do essencial. Nessa forma de discurso, a horizontalidade narrativa, marcada pela natureza metonímica, encontra seu ponto de tensão poética na circularidade metafórica ou em outras figuras que se realizam pela similitude ou procedimentos de confluência da similaridade.
***
Martim Francisco empinava pipa na surpresa dos céus de abril, ventos lilases nas nuvens de agosto, vermelhas linhas do horizonte, divisas da cidade ao longe: rio quiabanha ao norte e ocidente, pastos ao sul, praias ao leste.
A cidade despia-se à luz do sol de todo dia - corpo inteiro exposto às dobras imaginárias de suas sombras, linhas de suas nuvens e a tarde recendia o olor de seus recônditos, a fragrância de seus banhos; ao luar, o perfume de seus encantos, aroma de suas entranhas, manacás de seus jardins, flores com todos os seus odores, lírios e jasmins. Homens e mulheres dão volta em sua orla, consomem as sobras do tempo e cantam loas, louvores às vitórias de seus deuses, das suas obras nos altares de seus templos; acompanham as bordas do vento no bordado linho de suas ondas e marés; guardam heranças, poupam os pés, des-viam-se das poças de sangue.
Em frente da janela acompanhei-te
à sombra dos teus galhos, folhas abertas, flores
e pétalas, semente dos teus frutos
— língua entre os dentes
e o erguer de testas - desvio
dos vãos, das podas e das arestas, desvio
das poças de sangue e das bocas
abertas, bocas com fome
— esquartejadas
prosa, poesia e pátria.
Apostaste já em brigas de galo ou nunca viste a rinha do mestre Otávio?, inimigo doentio do velho Alcides, sempre do contra, desde outros carnavais, tempo do onça, juventude e bailes no clube - disputa renhida pelo amor da colombina, rivalidade e peleja na conquista da mesma mina, a jardineira Maria Helena que fugiu com Amaral num dia de carnaval, terça-feira gorda de mil novecentos e nada; nunca mais veio à cidade e deixou muita saudade; os bailes não mais foram iguais porque não se repetem. Mestre Otávio e velho Alcides apostavam alto quando brigavam os seus galos - bico de ouro, esporas de prata.
Vermelhos são os raios dos meus olhos quando secos ou rasos d'água; capa e espada de toureiro, brasa do meu cigarro e as garras dos teus dedos na pele do meu peito, ponteiros de carne e de nervos penetrando pelos. E quando imprimo a rima dos sonetos com as tintas dos tinteiros, pinto-te.
Pinto-te de azul quando a luz for do arrebol.
Os olhos que me olham em noites de alumbramento
são olhos de um só momento e de tempo algum, às lembranças
reduzidos e ao pó reconduzidos. Eu já vos lembro
sem que me esconda. Na sua frente
eu desfilo o que me foi vergonha e ainda vício, olhos
atrás do vidro.
O cavaleiro da novela já não era um de antes, cavaleiro andante, aventureiro, fidalgo errante; era um ferreiro entre a bigorna e o martelo, com forno e forja nos portões do burgo, livro e cidade de cegos: muros defronte à curva-da-morte e cruzeiro do sul. E o pai da donzela, navegador que era, sabia dos espetos da sua casa, espectros do seu drama nos quatro quartos do dia: com quantas damas se faz uma comédia? Com quantos paus se faz uma canoa? Não crer em rei por ser zarolho, e sim seu inimigo, sem reinado e sem coroa.
Amassas o que pisas não por descuido nem teimosia, desprezo pelo pão.
Aqui
aonde estou e onde piso
é canto de verso e mundo
— templo de mim
aonde calo voz, verbo de arrimo.
É tempo
em que estou, no qual existo
agora só
feito memória.
O barro da vida é rio pardo. Nunca o mesmo sob a ponte dos meus pés.
Jardinovelíssimas
Página publicada em abril de 2018
|