Seleção de
WALMIR AYALA
publicada originalmente na
REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA
N. 39, JUNIO 1975 pela
Embaixada do Brasil na Espanha
REI E RAINHA
Os reis estão fatigados
Rei e Rainha dormem lado a lado
Na urna de vidro
Estreitamente unidos debaixo da nuvem.
Em algumas estampas
A mulher enlaça o homem pela cintura
Com pernas delgadas de rã
E seu leito por ser uma corrente
Que suspeito de enxofre
Suas almas são estes dois pássaros
Que sobem para o sol
Endoidecidos
Rei e Rainha cintilam caninos pontiagudos
Já partido o prato em que comiam
Já partida a urna em que dormiam.
NADA É FIXO NA FACE DO POETA
Nada é fixo na face do poeta
Seu rosto é lisa mancha solar
Espectro
Ele desce ao jardim do lago
Diante da Noite.
Os sóis interceptados giram em sua testa
Sóis imperceptíveis de constelações
Insuspeitadas
Enquanto
Um pássaro liberta-se dos linhos
Entre Andrômeda e a estrela da tarde
Em torno dele giram estandartes e lembranças
Giram doze casas de planetas
Seu Duplo gira
Verde e negro no coração das esferas.
O poeta quase que não lembra
Sua forma fixa
Na aparência livre fluir do tempo
Fita por acaso o espaço
Em que se volatiliza a tensa face amada
O poeta e seu poema:
Estão rodeados de névoas em seus duelos
Antípodas
Cegos por mesma seta de amor
Que aos tumultos não se furta
Nem detém o fluir um no outro
De chama e orvalho
Água e Labareda
A lágrima salgada que na concha da língua
Em pérola de pronto se transforma.
O poeta e seu poema
Árduo e festivo sempre o seu Dilema.
ANDANÇAS
Veio do país da lama o jogo
com figuras de cera e o Galileu
expôs suas regras sem exaltar-se.
Sete imagens com certeza. Lentís-
simas incorporações de sementes
e devires, fendas e câmeras
secretas roçadas com a unha
no tabuleiro. Apostam
prêmios obsconsos. Uma pedra,
um sudário, um pote trincado
de mirra. O amigo sobe
e desce do sótão ao porão, sempre
entre o sol e a lua. Tudo é
guerra. Um moscardo pousa
na superfície rugosa do mapa
e mistura fronteiras, patas
sujas de tinta. Escolhes pois
o mais difícil, Lázaro-Antôni:
- A Travessia noturna dos rios,
fina adaga envenenada pelo sentidos.
Apuras a linguagem das mãos,
feita de sílabas ardentes
mas te calas. Podes morrer
pelo tanto que recusas. Não
importa. O Filho da Viúva,
uma a uma, derruba tuas peças.
Não importa: os jogadores inclinam-se
Sobre o tabuleiro e
prosseguem lutando.
... o que meus olhos viram
Um descuido o derrubou.
Precipitado no vazio, caiu doze
andares, no pátio interno
destroçado. Todos nós, sim,
todos ouvimos o grito
do operário caindo, a pedido
do arquiteto.
Primeiro os cabelos se dês-
prenderam do lenço e
logo o corpo estremeceu,
tomado pela descarga. Então
arcaico ele tombou, obedecendo
ao hierofante avarento, rijo
e sem valia. Metal
cintilante o atingiu
acima da segunda costela
e por instantes
ele permaneceu suspenso, trespas-
sado, com os olhos
estriados de cimento até
que a haste vergou-se
como um caniço e
o rapaz pode continuar
e cair, preso
ao rochedo, indiferente
às águias esvoaçantes
do átrio.
ESCRITO EM VENEZA
Mais vale confiar nos próprios olhos
do que nas opiniões. O corpo é única
evidência, refletia ele. Sábio
Ptolomeu! E pisava com força, pra-
zeiroso, a terra imóvel. Todos
reconhecem a incompatibilidade do
movimento linear com um globo
em rotação. E o vôo dos pássaros?
Os homens devem ter enlouquecido!
Atualmente ousam discordar
até das Escrituras.
Pico Della Mirandola, Dolese, que
refuta o Estagirita e prefere – em muitos
pontos – seguir a Demócrito; Gomezius
Pereira na sua “Pérola Antonina”:
Ocelus de Lucania e
ainda Rodrigues de Castro. Todos
admitem esta cristalina
verdade:
“- A Terra é imóvel.”
ESTAMPA DO CÃO SENTADO NUMA CADEIRA
Delicadíssima relação dos cães
com a morte. Quero
morrer como cão, fitando
as coisas transparentes.
Em piedosa aridez
eu me aproximo sem levantar
as orelhas. Estendo
as patas e me deito
fitando o horror das coisas
transparentes, roendo
um fêmur seco.
Nada sabe ele. Tudo
é inacabado e aspira
ao vazio da rua em que nas-
cestes: sibilino, arbóreo,
transparente e lúcido
sopro na colina.
HARO, Rodrigo de. Amigo da labareda. Poesia. São Paulo: Massao Ohno, 1991. 110 p. ilus. 15x22 cm. Capa: óleo sobre tela de Rodrigo de Haro. Contracapa: óleo sobre tela, retrato do artista aos 7 anos de Martinho de Haro. Col. A.M. (EA)
DE MANHÃ, NO JARDIM
Não quero agora tua nudez.
A veste é necessária. A distância
é necessária. E tudo mente
tudo que é visível.
O corpo mente sem querer pois é fluido
demais e não ocupa
verdadeiro espaço
nem da roupa que o veste.
O corpo sempre foge e tropeça
em sua malícia.
Somente a ideia levita.
A linha ágil do desenho
imóvel
cortando a luz
separando da luxúria
a coisa contemplada.
Tem mil anos o perfil
e o torso. Mil anos de poeira
limaram o discurso.
- Que fria nudez sem passo de dança!
Não quero mais
o apelo das coisas criadas.
A bastarda fonte dos sentidos
me aborrece — com tanta
algazarra.
Pois não quero...
Poesia excluída da Natura
Qual o mais raro? A samambaia
ou rígido conceito? Falas, falas...
E o verbo incerto abandonas
à lira conceituai e seu despeito. Exclui-se
a imagem, o verso é pardo.
Os cães de Adônis fogem
pela mata. Falas...
Contudo a voz te falta
e a poesia é mera
disciplina. - Raro?
Incómoda no poema
a presença da Natura.
Colher avencas, elegia
insistente. - Pode mesmo
dizer-se: - a poesia é concreta,
só letras no papel.
Festa muito frugal.
Erasmo
Regozija-se sozinho pela tinta preta
e pela ideia do labirinto. Infinitas
cadernetas nada provam,
imóveis no aparador onde
um rato mastiga pão seco.
(— mas a tinta veio da China...)
A mão que empunha o cálamo
é meticulosa e densa
e muito ágil. A linha
da escrita bem nítida
não despreza
irónico floreio.
Andarilho
Às vezes abre-se uma porta. Avista-se
o vestíbulo, uma nesga de salão
iluminado. Adivinham-se os fastos
da alegria. Dança-se com elegância
e gravidade - pois alegria ver-
dadeira é sempre um pouco
solene, com certos ares de espanto.
Mas logo fecha-se a porta
e somente a noite silenciosa
se estende à nossa volta.
Um acidente
- Socorro! Brada o espelho.
Impossível atendê-lo
a tempo. Pedaços de vidro
espalham-se no chão
fora da moldura
desolada.
Os cacos refletem rostos,
paisagens esquecidas.
Tudo brilha
um instante.
Logo desbota
e desaparece.
Plasma
Única vela, imagem de Eros Volúsia
dança em traje marajoara
na parede hospitalar
da carrancuda face da recepção
onde convém entregar as luvas
manchadas de soma, esperma
da linguagem. Frágil coisa é
uma parede sólida, o calçar
pantufas, apoiar-se na guarda
do fogão aceso. Definitiva ilusão
separa o gentil homem acossado
da ancestral mendicância da es-
pécie, do silvo persistente da fenda
vulcânica. Dormes sobre certezas...
Surdo ao apelo da sineta jubilosa
do pátio, procuras desvãos, fugas
prodigiosas entre os ângulos mais
íntimos da parede obtusa
sem receber mensagens
múltiplas do retrato oval.
E pena! Só tu poderias sus-
pender guirlandas acima
da porta do camarim, mas não ouviste
o comando expresso na dança
trinitária e ficaste para trás
olho no olho imóvel, semi-
aberto, de perfil
como animal na selva...
Agora é esperar
que outro ciclo tenha início.
*
Se caminhas pelas ruas
vais ouvindo os seres ofegantes
que respiram. Logo evocas
inacessíveis ossuários, ar-
quivos do ressoante
caramujo. Nele
encontra-se o discurso
perdido nas estantes her-
méticas da abóbada celeste.
Se levas ao ouvido o róseo
emblema calcinado
escutarás a voz
da plebe rouca como areia
em sua desdita; soprando
pela fenda do crustáceo
um ciclone sinaliza aberto
neste canto firme. Sem
te deteres, fátua natureza,
segues nada sabendo
de tudo que as palavras es-
clarecem. Sim, caminhas
nas calçadas e obedeces
ao instinto do animal que
te pertence.