MARCO VASQUES
Marco Vasques é poeta. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou como colaborador do caderno de cultura Anexo do jornal A Notícia e do jornal Leitura & Prazer da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi articulista de literatura do jornal Ô Catarina da Fundação Catarinense de Cultura e do jornal literário Rascunho do Paraná. Atualmente é colaborador do Caderno de Cultura do jornal Diário Catarinense.
Tem publicado os livros Cão no Claustro (Poemas, 2002, Letrad’água, Joinville), Elegias Urbanas (Poemas, 2005, Bem-te-vi, Rio de Janeiro), Harmonias do Inferno (edição do autor, 2005, Florianópolis), Diálogos com a literatura brasileira – volume I (entrevistas, 2004, EdUFSC/Movimento, SC/RS), Diálogos com a literatura brasileira – volume II (entrevistas, 2007, EdUFSC/Movimento, SC/RS).
Além de ter contos e poemas publicados nas revistas Agulha, Babel, Coyote, Blau, Cult. Foi diretor de cultural de Florianópolis onde criou o projeto Terça com Poesia. Fundador do jornal literário Capitu Traiu! Nasceu em Estância Velha, RS, em 1974. Com apenas dois anos de idade se muda para Santa Catarina, onde reside até hoje.
De
Marco Vasques
FLAUTA SEM BOCA
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010. 70 p.
ISBN 978-85-7662-056-3
“Neste pequeno conjunto de longos poemas, Marco Vasques nos coloca diante dos destroços do tempo e da anomia presente que soçobram à tona da linguagem. E mais uma vez, aqui e ali, enfiamos pelas formas do manicômio, do hospital, da necrópole, etc, imagens espetaculares dos nossos territórios urbanos”. RONALD AUGUSTO
“Estamos perante uma universalidade/cosmicidade tumultuosa, lancinante, vivíssima do corpo-musical-antropofágico-vulcânico- desejante que dessemantiza, destrói(re)constrói outro corpo com uma CLAVE de PERCUSSÃO biológica-crepuscular-avassaladora: uma espécie de THAUMASTON-em-fuga”. LUIS SERGUILHA
Apresentamos a seguir os poemetos que antecedem os poemas longos do livro, a guisa de apresentação da obra.
(dô)
Sou aquele que nasceu dentro de águas turvas
guarda todas a sombras dos mortos
e ouve o silêncio de cada afogado
por isso
pouco me banho
pois a placenta ainda me é mórbida
(ré)
sou pedra poste ou mesmo terra
carne petrificada em teu prédio
minha fome não tem predileção
a comida
pouco me sustenta
pois o horror das horas me basta
(mi)
minha fronte dorme em frontispícios
todas as notas nas águas
sempre surdas
a vomitar o soluço mudo
dos meus eternos afogados
eu mesmo me mordo
(fá)
braços e pernas de concreto
se fundem ao meu corpo
eu não sou mais eu
sou aquele pedra
que dorme
em forma de corpo
mas que ainda se sonha
e se solidifica
até a ternura morder-se
(sol)
minha morte move-se nos dias
multiplica relógios
ao som de um silêncio surdo
absurdo
irônico os círios luzindo
a velar o desejo
alheio
apaguem os meus sóis
(si)
eu vi o tempo das águas
e os corpos expostos nas galerias
dormem na pele dos tempos
por isso
minha carne continua líquido
e minha alma se evapora
pedra
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MAIS POEMAS DO AUTOR...
9
E o sonho bateu asas
Nietzsche in Além do bem e do mal
os movimentos dos corpos incineram
sobre a cama as secreções e excrementos
buscados em um anúncio de jornal
onde todos os prazeres são oferecidos
ao lado de uma manchete de estupro
e tudo se mistura no jardim de esqueletos poluídos
garças brancas têm asas decapitadas pela
tinta das toalhas em que nos secamos
quando senhoras emparedadas costuram
as fraldas dos nenéns com suas cãs carcomidas
adiante uma flauta em forma de pênis
solta a semente no ouvido de uma cifra
e cria-se voz e movimento entre o acelerar
e o gás carbônico de um escapamento
e mais um estupro nasce com promessa de vingança
e ainda chamam o filho de rebento
não bastasse isso ainda cresce
sob a luz de um poste prostituído
mais uma face cega para o mundo
(Marco Vasques in Elegias Urbanas, Bem-te-vi, RJ, 2005)
6
“Caiu-me o olhar para a límpida fonte;
Que logo desviei, colhendo a ver a
Imagem da vergonha em minha fronte.”
(Dante in Purgatório, canto XXX)
o metal na veia orquestra os órgãos
e desenhos no monturo se acumulam
coração pulmão fígado e voz entram
espontâneos na faca que expia a artéria
e bate no peito um esquife dobrando
a esquina acompanhado pela multidão
com lágrimas de pedra e ranger de
madeiras nas pernas de mortos vindouros
um copo de ácido na saliva
não corrói o aço da faca na garganta
e nem impede o corte vertical
da lâmina que divide a língua
e faz surgir do homem um copo
de vinho dividido em leucócitos e
eritrócitos que escorrem nos dias e nas noites
do outro lado da cidade
encontro outros órgãos longe
da orquestração cotidiana
porém próximos dos risos dos revólveres
e na absoluta solidão
grita a filantropia de um coração andarilho
no desejo de construir uma orquestra sinfônica
em que as facas não sangrem o violino
e a cadeira de rodas posta à frente do piano
não emane a mesma e única música
que ecoa na calmaria dos lagos
onde dormem afogados
meninos com suas canções de ninar
jovens guitarras elétricas homens
mulheres anjos demônios mísseis
moedas cédulas prédios carros
placas de advertência e a desconexão
completa dos dedos sujos de pólvora
no aborto dos órgãos só varia
a estupidez humana em aperfeiçoar
os acordes da vida
quando se está condenado a
tocar sempre a mesma nota
(Marco Vasques in Elegias Urbanas, Bem-te-vi, RJ, 2005)
FLAUTA SEM BOCA À PROCURA DE MÚSICA
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço
na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia
da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco
morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo
para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa
para não comer o farnel das dores em outra mesa
sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo
e erguer um sanatório na tessitura da pele
agarra com os dentes a música durante o sono
porque a telegrafia dos sons dorme no antigo
retrato familiar onde o mutismo irônico da face
revela o mutuário parentesco em moratória
e no sorriso ancestral mais uma música perdida
porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade
na minha cama o desejo messiânico sufoca
a passagem do dia e o reinado dos lençóis
na isquemia absoluta de qualquer hedonismo
reduz a imagem da valsa dos corpos
à paralisia do timbre de uma voz que não ouço
de um corpo congelado que não reencontro
de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne
de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo
de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani
[e que nunca foi pintado
na minha carne o desejo messiânico sufoca
a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas
ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina
e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua
a palavra escoa da boca como flauta sem música
pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço
e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos
daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer
e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos
a soarem nos nossos ouvidos
flauta sem boca à procura de música.
(2007, inédito)
O corpo de Ahzeturis
Lateja o peito, e tonto ele sai sob o sol de uma tarde que nada lhe diz. Comido pelo silêncio da vertigem, vivência da pele, caminha rumo ao encontro. Do corpo nada sabia. Nem sabia se o guarda-roupa servira ao corpo, ou se os corpos serviam aos guarda-roupas. Portanto, para ele a nudez ainda era um mistério, e nada poderia ser dito para cortar o efeito das vestes empalhadas pelas ruas. Pensou em um ditado oriental, sem ao menos entender por que seu pensamento se dirigia para o outro lado do mundo. Ficou retumbando em sua cabeça: a casa é o túmulo dos vivos. Voltou o olhar à terra e viu que tudo é uma questão de tempo. Viu uma esperança quando desejou que seus fios de cabelo fossem usados para fabricar flautas, o crânio pudesse ser útil na fabricação de um instrumento de percussão, no entanto tinham que aproveitar os olhos para que crianças inocentes brincassem com um pouco de brilho, de vidros e sonhos. Dos ossos desejava apenas que fossem bem utilizados, e uma idéia lhe agradou: fazer deles um faqueiro, onde figurassem garfos, facas e colheres. Desejou que todos aqueles que, antropófagos, engoliram sem piedade sua simplicidade, sua liberdade, todos aqueles que se afogaram de tanto beber seu sangue, a esses desejou que fosse dado cada talher fabricado com seus ossos. Com a pele poderiam fazer o que quisessem, mas o mais acertado seria fazer dela algumas páginas para poemas, pois as linhas já estavam prontas, todas esculpidas por canivetes e facas. A humanidade se envergonharia de tanta dor, nenhum poeta teria coragem de rabiscar uma só palavra sobre a pele tão escrita. O sangue poderia ser usado para fabricar alguns quadros. Bosch, Magritte, Dali e Picasso saberiam como usá-lo. Só jogar na tela. Tanta dor circular, algumas gerações carregadas nas veias, não precisa de muito trato artístico. Pollock talvez fosse o que mais entendesse tal gravidade de vermelho. Uma gravidade de arrebol em dia de funeral. Vermelho em Bach. Vermelho soturno e surdo nos dedos de Beethoven. As unhas poderiam ser entregues a algum artista de bairro, desses que sabem fazer belos mosaicos em fachadas de prédios. As tripas mereceriam, talvez, ser transformadas em um saxofone. Assim Ahzeturis rumava ao encontro de sua decomposição. Desejou, ainda, que seu estômago se transformasse em bola de futebol e estivesse a serviço da alegria, logo Ahzeturis, que nunca conhecera esse sentimento. Mesmo assim desejava proliferar o desconhecido sentimento entre os homens, sobretudo entre as crianças. Continuou andando por cinco dias até completar toda a saga e ter distribuído, de forma utilitária, tudo que era físico. Então, quando chegou na boca, não soube o que fazer com o verbo. Sentou num trilho antigo, na mais absoluta solidão, e chorou. Contam que depois disso Ahzeturis nunca mais foi encontrado. Alguns estudiosos da literatura, por exemplo, dizem tê-lo encontrado, em forma de sombra, nos textos de Thomas Mann, Gogol, Paul Éluard e Dostoievski. E Ahzeturis, que nunca chamou a atenção em vida, hoje é escopo de pesquisas históricas, pois todos querem saber por que o corpo de Ahzeturis jamais foi encontrado.
(publicado na revista Coyote, 2006)
Página publicada em novembro de 2008
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