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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


MARCO VASQUES

MARCO VASQUES

 

Marco Vasques é poeta. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou como colaborador do caderno de cultura Anexo do jornal A Notícia e do jornal Leitura & Prazer da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi articulista de literatura do jornal Ô Catarina da Fundação Catarinense de Cultura e do jornal literário Rascunho do Paraná. Atualmente é colaborador do Caderno de Cultura do jornal Diário Catarinense.

Tem publicado os livros Cão no Claustro (Poemas, 2002, Letrad’água, Joinville), Elegias Urbanas (Poemas, 2005, Bem-te-vi, Rio de Janeiro), Harmonias do Inferno (edição do autor, 2005, Florianópolis), Diálogos com a literatura brasileira – volume I (entrevistas, 2004, EdUFSC/Movimento, SC/RS), Diálogos com a literatura brasileira – volume II (entrevistas, 2007, EdUFSC/Movimento, SC/RS).

 Além de ter contos e poemas publicados nas revistas Agulha, Babel, Coyote, Blau, Cult. Foi diretor de cultural de Florianópolis onde criou o projeto Terça com Poesia. Fundador do jornal literário Capitu Traiu! Nasceu em Estância Velha, RS, em 1974. Com apenas dois anos de idade se muda para Santa Catarina, onde reside até hoje.


 

De

Marco Vasques

FLAUTA SEM BOCA

Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.  70 p.

ISBN  978-85-7662-056-3

 

“Neste pequeno conjunto de longos poemas, Marco Vasques nos coloca diante dos destroços do tempo e da anomia presente que soçobram à tona da linguagem. E mais uma vez, aqui e ali, enfiamos pelas formas do manicômio, do hospital, da necrópole, etc, imagens espetaculares dos nossos territórios urbanos”.  RONALD AUGUSTO

 

“Estamos perante uma universalidade/cosmicidade tumultuosa, lancinante, vivíssima do corpo-musical-antropofágico-vulcânico- desejante que dessemantiza, destrói(re)constrói outro corpo com uma CLAVE de PERCUSSÃO biológica-crepuscular-avassaladora: uma espécie de THAUMASTON-em-fuga”.  LUIS SERGUILHA

 

Apresentamos a seguir os poemetos que antecedem os poemas longos do livro, a guisa de apresentação da obra.

 

 

 

(dô)

 

Sou aquele que nasceu dentro de águas turvas

guarda todas a sombras dos mortos

e ouve o silêncio de cada afogado

 

por isso

 

pouco me banho

 

pois a placenta ainda me é mórbida

 

 

 

(ré)

 

sou pedra poste ou mesmo terra

carne petrificada em teu prédio

minha fome não tem predileção

 

a comida

 

pouco me sustenta

 

pois o horror das horas me basta

 

 

 

(mi)

 

minha fronte dorme em frontispícios

todas as notas nas águas

sempre surdas

 

a vomitar o soluço mudo

dos meus eternos afogados

 

eu mesmo me mordo

 

 

 

(fá)

 

braços e pernas de concreto

se fundem ao meu corpo

eu não sou mais eu

 

sou aquele pedra

que dorme

 

em forma de corpo

mas que ainda se sonha

e se solidifica

 

até a ternura morder-se

 

 

 

(sol)

 

minha morte move-se nos dias

multiplica relógios

ao som de um silêncio surdo

absurdo

 

irônico os círios luzindo

a velar o desejo

alheio

 

apaguem os meus sóis

 

 

 

(si)

 

eu vi o tempo das águas

e os corpos expostos nas galerias

dormem na pele dos tempos

 

por isso

 

minha carne continua líquido

e minha alma se evapora

 

pedra

 
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MAIS POEMAS DO AUTOR...

 


9

  

E o sonho bateu asas

Nietzsche in Além do bem e do mal

 

os movimentos dos corpos incineram

sobre a cama as secreções e excrementos

buscados em um anúncio de jornal

onde todos os prazeres são oferecidos

ao lado de uma manchete de estupro

e tudo se mistura no jardim de esqueletos poluídos

garças brancas têm asas decapitadas pela

tinta das toalhas em que nos secamos

quando senhoras emparedadas costuram

as fraldas dos nenéns com suas cãs carcomidas

adiante uma flauta em forma de pênis

solta a semente no ouvido de uma cifra

e cria-se voz e movimento entre o acelerar

e o gás carbônico de um escapamento

e mais um estupro nasce com promessa de vingança

e ainda chamam o filho de rebento

não bastasse isso ainda cresce

sob a luz de um poste prostituído

mais uma face cega para o mundo

 

(Marco Vasques in Elegias Urbanas, Bem-te-vi, RJ, 2005)

 

 

6

 

“Caiu-me o olhar para a límpida fonte;

Que logo desviei, colhendo a ver a

Imagem da vergonha em minha fronte.”

(Dante in Purgatório, canto XXX)

 

 

o metal na veia orquestra os órgãos

e desenhos no monturo se acumulam

coração pulmão fígado e voz entram

espontâneos na faca que expia a artéria

 

e bate no peito um esquife dobrando

a esquina acompanhado pela multidão

com lágrimas de pedra e ranger de

madeiras nas pernas de mortos vindouros

 

um copo de ácido na saliva

não corrói o aço da faca na garganta

e nem impede o corte vertical

da lâmina que divide a língua

 

e faz surgir do homem um copo

de vinho dividido em leucócitos e

eritrócitos que escorrem nos dias e nas noites

 

do outro lado da cidade

encontro outros órgãos longe

da orquestração cotidiana

porém próximos dos risos dos revólveres

 

e na absoluta solidão

grita a filantropia de um coração andarilho

no desejo de construir uma orquestra sinfônica

em que as facas não sangrem o violino

e a cadeira de rodas posta à frente do piano

não emane a mesma e única música

que ecoa na calmaria dos lagos

onde dormem afogados

meninos com suas canções de ninar

jovens guitarras elétricas homens

mulheres anjos demônios mísseis

 

moedas cédulas prédios carros

placas de advertência e a desconexão

completa dos dedos sujos de pólvora

 

no aborto dos órgãos só varia

a estupidez humana em aperfeiçoar

os acordes da vida

quando se está condenado a

tocar sempre a mesma nota

 

(Marco Vasques in Elegias Urbanas, Bem-te-vi, RJ, 2005)

 

 

 

FLAUTA SEM BOCA À PROCURA DE MÚSICA                                     

                  

ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina

e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua

a palavra escoa da boca como flauta sem música

pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

 

na casa em que nasci tudo se doa sem cerimônia

da carne em nevralgia ao beijo na mão do carrasco

morde o verbo e trinca a sorte no próprio corpo

para não entregar o sacerdócio do útero a outra casa 

para não comer o farnel das dores em outra mesa

sobretudo para não morder a escuridão antes do tempo

e erguer um sanatório na tessitura da pele

 

agarra com os dentes a música durante o sono

porque a telegrafia dos sons dorme no antigo

retrato familiar onde o mutismo irônico da face

revela o mutuário parentesco em moratória

e no sorriso ancestral mais uma música perdida

porque o silêncio pronuncia a afania da fraternidade 

 

 

na minha cama o desejo messiânico sufoca

a passagem do dia e o reinado dos lençóis

na isquemia absoluta de qualquer hedonismo

reduz a imagem da valsa dos corpos

à paralisia do timbre de uma voz que não ouço

de um corpo congelado que não reencontro

de um sorriso sujo desenhado no algodão que toca a carne

de uma ilusão pregada nos olhos que não vejo

de um braço amputado que se debate numa tela de Modigliani

 [e que nunca foi pintado

 

 

na minha carne o desejo messiânico sufoca

a passagem dos anos e no vitral primitivo das horas

ecoa na voz violada a lâmina da guilhotina

e o silêncio do cadafalso extrai as provisões da língua

a palavra escoa da boca como flauta sem música

pois a última nota jaz na corda que estrangula o pescoço

 

e tudo que nos resta ao final do dia são os olhares acusativos

daquelas antigas fotografias amarelecidas num álbum qualquer

 

e o silêncio da numerologia estampada nos túmulos

a soarem nos nossos ouvidos

          flauta sem boca à procura de música.

 

(2007, inédito)

 

 

O corpo de Ahzeturis

 

         Lateja o peito, e tonto ele sai sob o sol de uma tarde que nada lhe diz. Comido pelo silêncio da vertigem, vivência da pele, caminha rumo ao encontro. Do corpo nada sabia. Nem sabia se o guarda-roupa servira ao corpo, ou se os corpos serviam aos guarda-roupas. Portanto, para ele a nudez ainda era um mistério, e nada poderia ser dito para cortar o efeito das vestes empalhadas pelas ruas. Pensou em um ditado oriental, sem ao menos entender por que seu pensamento se dirigia para o outro lado do mundo. Ficou retumbando em sua cabeça: a casa é o túmulo dos vivos. Voltou o olhar à terra e viu que tudo é uma questão de tempo. Viu uma esperança quando desejou que seus fios de cabelo fossem usados para fabricar flautas, o crânio pudesse ser útil na fabricação de um instrumento de percussão, no entanto tinham que aproveitar os olhos para que crianças inocentes brincassem com um pouco de brilho, de vidros e sonhos. Dos ossos desejava apenas que fossem bem utilizados, e uma idéia lhe agradou: fazer deles um faqueiro, onde figurassem garfos, facas e colheres. Desejou que todos aqueles que, antropófagos, engoliram sem piedade sua simplicidade, sua liberdade, todos aqueles que se afogaram de tanto beber seu sangue, a esses desejou que fosse dado cada talher fabricado com seus ossos. Com a pele poderiam fazer o que quisessem, mas o mais acertado seria fazer dela algumas páginas para poemas, pois as linhas já estavam prontas, todas esculpidas por canivetes e facas. A humanidade se envergonharia de tanta dor, nenhum poeta teria coragem de rabiscar uma só palavra sobre a pele tão escrita. O sangue poderia ser usado para fabricar alguns quadros. Bosch, Magritte, Dali e Picasso saberiam como usá-lo. Só jogar na tela. Tanta dor circular, algumas gerações carregadas nas veias, não precisa de muito trato artístico. Pollock talvez fosse o que mais entendesse tal gravidade de vermelho. Uma gravidade de arrebol em dia de funeral. Vermelho em Bach. Vermelho soturno e surdo nos dedos de Beethoven. As unhas poderiam ser entregues a algum artista de bairro, desses que sabem fazer belos mosaicos em fachadas de prédios. As tripas mereceriam, talvez, ser transformadas em um saxofone. Assim Ahzeturis rumava ao encontro de sua decomposição. Desejou, ainda, que seu estômago se transformasse em bola de futebol e estivesse a serviço da alegria, logo Ahzeturis, que nunca conhecera esse sentimento. Mesmo assim desejava proliferar o desconhecido sentimento entre os homens, sobretudo entre as crianças. Continuou andando por cinco dias até completar toda a saga e ter distribuído, de forma utilitária, tudo que era físico. Então, quando chegou na boca, não soube o que fazer com o verbo. Sentou num trilho antigo, na mais absoluta solidão, e chorou. Contam que depois disso Ahzeturis nunca mais foi encontrado. Alguns estudiosos da literatura, por exemplo, dizem tê-lo encontrado, em forma de sombra, nos textos de Thomas Mann, Gogol, Paul Éluard e Dostoievski. E Ahzeturis, que nunca chamou a atenção em vida, hoje é escopo de pesquisas históricas, pois todos querem saber por que o corpo de Ahzeturis jamais foi encontrado.

 

 

(publicado na revista Coyote, 2006)


Página publicada em novembro de 2008



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