PAULO SUESS
E se mais uma vez o poeta evoca passagens sombrias, sangue inocente, violência autoritária, miséria e lágrimas, é porque as palavras são a forma de cantar o mundo contemporâneo, onde o cenário de sombras e ocorrências odiosas parece insistir que a encarnação humana é uma falácia ou uma cruel invenção de um absoluto pervertido. No entanto, no meio do alarido e na retórica, o grito e a canção do poeta iluminam-se para negar a lógica da barbárie de nosso tempo. MÁRCIO SOUZA
SUESS, Paulo. Do grito à canção: poemas de resistência. Prefácio: Márcio Souza. Ilustração: Marlene Crespo. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. 110 p. ilus. 15,5x22,5 cm. Brochura com ilustrações em p&b. ISBN 85-05-00058-7 Col. A.M. (EE)
Suspeita
Descontadas a dor e a solidão,
o que sobra da vida?
É um patrão que me fica devendo
(uma barra de sabão
contra o mau cheiro),
ou sou eu que devo ainda
uma ou outra amostra
de felicidade em praça pública
entre dez e onze da noite?
No ecossistema de patrão e peão
sempre um pobre coitado
tem uma conta a pagar,
deve um grito insolvente,
um soluço emprestado.
Suspeito que nem a reforma agrária
nem o socialismo estabelecerão igualdade,
onde nem santos nem policiais
conseguem dividir suor e sorte
em partes iguais.
Suspeito que somente o dilúvio
vai socializar a miséria
e repartir a riqueza
quando todos se afundarem neste pantanal
solidários até o pescoço.
Cidade Santa, Tiwanaku
O relâmpago irado do conquistador
— rachou a Porta do Sol
que selava
a morada dos Deuses.
O sol, porém, continua íntegro
e sem porta;
como no primeiro dia da criação
marca o tempo que passou
e ainda há de vir.
Dia após dia aquece a terra prenhe
de templos e torsos;
seus raios soldam,
com a rotina certa do cosmo,
a cicatriz da pedra fendida
e costuram os corpos golpeados,
no seu repouso subterrâneo.
O passado é mais que as ruínas
contabilizadas por Sanginés.
No ventre de Pacha Mama
dorme uma força maior
que a soma
de indignação e dor
de cada povo arrebatado.
Se as nuvens que escondem
o céu de Tiwanaku
abrirem as comportas de chuva,
como prometem,
um Deus fará do barro destes cacos
criaturas à sua semelhança.
Página publicada em maio de 2015
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