MARLON DE ALMEIDA
Marlon de Almeida nasceu em Porto Alegre, em 1966. É mestre e doutor em Letras pela UFRGS. Já publicou Histórias de um domingo qualquer (1994); Domingo desde a esquina (1997), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura; Domingo de futebol (1997); Domingo de chuva (2000); Malabares ou o clube dos incomparáveis (2003), indicado ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
Artesão
Talhar a carne como se
o verso no espeto de ferro.
Girá-la conforme
a palavra se dobre.
São duas,
a palavra e a carne.
Cozer, não de súbita
cava, mas calma
até que se forje na brasa
não mais do que uma,
palavracarne.
Fonte: Malabares ou clube dos incomparáveis. Porto Alegre: AGE, 2003, p.15; 21
AS ALMAS DA CASA
A casa não mais guarda o mundo todo das manhãs que começavam no primeiro de janeiro.
Dentro a casa guarda o gosto de outro tempo:
nas cadeiras de palhar trançado, no sofá de braços quedos,
no assoalho carcomido e sem remendo, nos carteados
que já não varam madrugadas, na mesa posta de memória e vento,
nos brinquedos tristes de poeira e esquecimento,
a casa guarda seus rumores e janeiros nunca mais ensolarados.
Para onde foram todos os amigos, os vizinhos, namorados escondidos, para onde foram nossos olhos sobre o mar de linho?
Meu Deus, será que nós morremos? E se não, por que, como fantasmas de nós mesmos, assombramos esta casa onde se foram nossos anos encantados?
As vozes que ouvimos são dos vivos e nós estamos sós.
A CASA DAS ALMAS
Mandou levar águas passadas em caixas de tempo e papel:
queria viver o presente que não tinha futuro.
(O presente era uma televisão exigindo as desgraças
de sempre.)
Quando vieram levar os móveis da sala não se moveu,
como se presa na teia de silêncio e seda.
Como se sapo no escuro da boca da cobra.
Deixaram-lhea tela no breu
repetindo os fantasmas de todas as horas.
E A ALMA DA GENTE
A alma é o fantasma da tua pessoa
coisa ruim nem boa
apenas a tua sombra calma.
Página publicada em maio de 2018
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