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MARCO DE MENEZES
Nasceu em 1968. Natural de Uruguaiana, RS, é poeta e editor, autor de quatro livros de poesia, entre os quais “Fim de coisas velhas” (vencedor do Prêmio Açorianos — Livro do ano e poesia, 2010 ) e “Ode Paranoide” (finalista do Prêmio Açorianos 2011).
Extraído de:
COLETÂNEA DE POESIA GAÚCHA CONTEMPORÂNEA. Organizador Dilan Camargo. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 2013. 354 p. ISBN 978-85-66054-002 - Ex. bib. Antonio Miranda
ábaco
Porque tudo se passa em silêncio
quis assim o azar que aquele velho gato
subisse no telhado pelos canos
e — inútil — uma vez mais mirasse
o corisco de fachadas e janelas
de sua gávea felina.
Porque tudo se passa em silêncio
fixou o olho-amêndoa nas cúpulas
dos guarda-chuvas lá embaixo
como se seguisse um cortejo ou
computasse no ábaco. Um escuro,
outro, uma sombrinha rosa que se desculpa da chuva,
um quebrado parecendo um circo arruinado,
outro pequenino, um bem transparente.
Porque tudo se passa em silêncio
e não há barulho mais alto que o
das rodas da engrenagem do mundo,
o gato esticou uma pata,
acomodou a cabeça na outra e se deixou ali,
na chuvinha mandada pelo cinza logo acima.
Eu, olhando para este gato
que subiu no telhado pelo encanamento,
não pude esquecer do ditado popular que emula más notícias
com isso de gato subir no telhado.
Besteira, me disse.
Ali, do fundo de sua pelugem,
o gato me olhou cúmplice e
não necessariamente amistoso.
a árvore e o carvoeiro
por via das dúvidas
eu dou bom dia ao velho carvoeiro
e não deixo de abraçar furtivo o grande plátano do parque
e concedo aos galhos novos um muxoxo grave
e todavia o velho carvoeiro seguirá partindo as achas enquanto
der bom-dia
e o eco da rua que lhe chega a cabeça
não é senão uma peça maldita que lhe prega o mundo
em seu corredorzinho
alheio e esquecido na caligem
teria a decência de se lastimar apenas
quando eu não passar
por via das dúvidas hoje miro mais forte o plátano.
inço
me arrancam
como bovino manso
de um pátio em chamas
folião com arruda nos olhos
com meu roupão, umas congas
e lá se vai ribeira abaixo
minha inútil bandeira
me arrancam
como espinho
do píncaro
pinças púrpura
de príapo
e mais embaixo
— onde não há soleira
ou clarabóia
nem sacada sutil
ou avículas rútilas
nem alimento fácil
nem gradeado gramático
ou gráfica confidência —
me arrancam
do pátio em chamas
Página publicada em maio de 2018
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