MARCELO PIRES
Marcelo Pires, gaúcho de Porto Alegre, é co-autor de dois livros: um infantil, Liga-Desliga, Cia das Letrinhas com Camila Franco e Jarbas Agnnelli. E um de missivas, eu te amo.com.br, LP&M, com Letícia Wierzchowski. Escreveu durante muito tempo a coluna PS do PS do PS, na revista Capricho e, hoje, escreve na Revista da MTV. É publicitário, criador de campanhas como os Gordinhos do DDD ou a dos Monstros da RBS.
De
Anotações a partir do meu astrolábio
Porto Alegre: AMOP – Ame o Poema editora, 2004
ISBN 85-98240-14-1
Acho um botão no chão.
Perto, fio de linha preta.
Vestígios do teu vestido.
Costuro e descosturo
o achado entre meus dedos.
Nossa noite
outra vez
agulha.
Estou lendo um lindo poema de Borges
e o som de um sirene ao longe
encaixa-se entre um verso e outro.
Estrofe seguinte, ouço passos do vizinho
escandindo-se, escondendo-se entre as palavras:
versos ou paredes?
Leio o poema como se fosse cego,
ecos se imiscuindo no breu. Ou braile.
minha respiração e a respiração do poeta.
Minha respiração e a respiração do poeta.
O hoje, veloz, invade Borges: volumes.
Suspensa biblioteca.
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já não desejo a visão de extraterrestres
contatos imediatos com luzes e naves e seres e martes
nem procuro nossa senhora aparecida
no fundo do mar ou nossa senhora
de guadalupe na gruta do méxico
não quero o cometa o eclipse o arco-íris
a esquadrilha da fumaça ou o incêndio
tanto faz a pessoa famosa que passa
ou os manifestantes pró ou contra
que se encontram em plena praça
inúteis godzillas no centro da cidade
- silêncio!
vejo
meu filho
dormir
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ANOTAÇÕES A PARTIR DO MEU ASTROLÁBIO
I
Noite de verão, na praia, vi uma estrela cadente e decidi
fazer o "pedido". As aspas não são por acaso. O "pedido",
naquela ocasião, ainda era um simples pedido. Com o
passar do tempo, foi repetido dezenas de outras vezes.
57, para ser exato. 57 estrelas, para ser honesto.
Minha constelação de destinos.
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PORTO
Nasci bem perto de alemães.
Lendo de longe meu Guimarães.
Rosa? Só na maçã dos rostos.
Ramos? De uvas, no parreiral.
Cresci assim, entre italianos.
Quase a uma país de Graciliano.
Estranhíssimo a João Cabral.
De Melo Neto estrangeiro.
Avenida Érico Veríssimo.
Até Amado tem uma vida.
Um vasto mundo até Drummond.
Dos sertões e de Euclides? Nada.
De Nelson Rodrigues o mar?
O Rio de Machado de Assis?
Daqui, dos salões de Quintana,
Não dá pra ver Copacabana.
Somos tristes sim, mas não trópicos.
Brasileiros, sim, mas não típicos.
E se somos tímidos, Tom,
É por total falta de bossa.
Tua Bandeira, Manuel, é nossa.
Nossa a tua vila, Villa Lobos.
É nossa também a tua, Noel.
Sob o mesmo céu, estamos todos.
Bom porto seja o céu sulino.
Veja, Vinicius de Moraes,
Aqui o sol não quer ser a pino,
O pôr-do-sol é que é demais.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 13. Número 20. Março 2005. Revista trimestral de poesia. Editor Luciano Trigo. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2005. Ilus. Ex. bibl. Antonio Miranda
I
Sou Adélia, esta morada. Divinópolis.
Sou Manoel, este quarto, o Pantanal.
Sou Cabral, esta janela. Pernambuco.
Sou Gullar, cada mesinha. Maranhão.
Sou Quintana, esta cadeira, Porto Alegre.
Sou Pessoa. Esta emoção é Portugal.
II
redondilhas
papai diz você está certa
e mamãe diz certa, certa
juiz diz você está certa
e a plateia diz certa, certa
divã diz você está certa
e a igreja diz certa, certa
jornal diz você está certa
e a amiga diz certa, certa
horóscopo também diz
cartomante também diz
certa, certa, certa, certa
certa de tudo, você
deita mas não se aquieta
— Merda. Eu Estou Errada
III
Existe pois sim
gente que até no pois não
vê somente o não
IV
Surgiu verdinho novo
na pequena floreira
que vive abandonada
no parapeito da janela
lá ano quarto dos fundos
— Vou cuidar de você —
prometo a mim e a ela.
E não cumpro, e não cuido,
e evito, por uns tempos,
a janela, o meu coração.
Volto porém ao quarto,
fingindo (para quem ?)
ali estar por acaso.
Nasceu pé de Lispector
berro, calado. E carmim.
Página publicada em junho de 2008. Ampliada e republicada em julho de 2018.
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