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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

POESIA BRASILEIRA – SIMBOLISMO

MARCELO GAMA

MARCELO GAMA

(1878- 1915)

 

Costumam os críticos de língua inglêsa dividir o Simbolismo nos ramos sério-estético e irônico-conversacional. Em nosso movimento, o segundo aspecto é mais raro, embora seja observável, por exemplo, em Marcelo Gama, cujo vocabulário assume por vezes tom coloquial e cuja dicção não disfarça a ironia. Marcelo Gama preocupa-se com temas cotidianos, de modo esquadrinhador e até ferino, o que revela, também, a influência de Cesário Verde, que nele já foi apontada. “Mulheres", nessa direção, é uma das composições mais curiosas de todo o simbolismo brasileiro; viva e mordente, corrosiva e sensual, não perde o interesse

em toda a sua extensão. Mas também na diretriz sério-estética Marcelo possui merecimento, por exemplo em "Bucólico", com a sua mansidão pastoril e o seu feliz emprego do arcaísmo.

 

Nasceu Marcello Gama — cujo verdadeiro nome era Possidônio Machado — em Mostardas, no Rio Grande do Sul, em 3 de mar(x> de 1878. Exerceu o jornalismo e empregou-se em escritorios comerciais; sonhou com o socialismo. Faleceu no Rio, por acidente, quando, ao regressar de madrugada para casa, foi projetado do bonde, onde não resistira ao sono; caiu de um viaduto de 20 metros de altura sobre linha de estrada de ferro. Foi isso no dia 7 de maço de 1915. -

 

BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

 

Via Sacra, Porto Alegre, 1902 (2." ed., Porto Alegre, Livraria Selbach, 1918);

Avatar, Porto Alegre, 1904; Noite de Insônia, Porto Alegre, 1908; Via Sacra

e Outros Poemas (compreendendo Via Sacra, Avatar, Noite de Insônia e Dis-

persos) Rio, Edição da Sociedade Filipe d'Oliveira, 1944.

 

PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS, in  POESIA SIMBOLISTA Antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1965, p.316-319

 

 

SUGESTÕES DE OCASO

 

Não sei por que será que os aspectos de agosto

me convidam a cisma a hora do sol-posto!

 

Ontem fazia frio, era roxo o arrebol,

e céus e terra e tudo, as árvores e as águas,

pareciam estar carpindo as suas mágoas...

Choravam de saudade, ao ver partir o Sol.

 

E eu também fiquei triste, até eu, que sabia

que a treva era um instante e o Sol ressurgiria!

 

A natureza tem desses fundos mistérios...

Sei que uma sepultura é o nada, a eterna paz,

e entretanto, meu Deus! não me sinto capaz

de penetrar sozinho, a noite, em cemitérios!

 

Segredos que a razão não nos explica: o caso

é que eu participei da amargura do ocaso.

 

Erguendo os braços nus, despidos pelo outono,

o arvoredo guardava atitudes de prece.

0 silêncio rezava. Era como se houvesse

romarias no espaço. A tarde tinha sono.

 

Da paisagem subia, espiralando, o incenso

que me fazia ter o coração suspenso.

 

E estávamos n6s dois: eu e minh'alma, ali;

eu sentado, ela em frente; e pus-me a interrogá-la...

Pois embora ela fosse um doente sem fala,

não conto, por pudor, certas coisas que ouvi.

 

         Por Deus Nosso Senhor, que perdi toda a calma!

E haver inda quem negue a existência da alma!

 

Ai! como foram mas, amargas, aziagas,

as horas que passou est'alma combalida!

Mas o instante de horror maior em minha vida

foi quando eu a despi e examinei-lhe as chagas!

 

Depois, risquei no chão, uns sinais cabalísticos...

Lembrei-me de morrer, e pus-me a escrever dísticos.

 

Epitáfios assim: "Foi mau, mas morreu cedo".

E havia logo abaixo, um nome de mulher...

(A gente muita vez escreve o que não quer...)

Sepultura e noivado... Estremeci de medo.

 

Que se a idéia de morte as vezes nos conforta,

apavora-nos ver uma pessoa morta.

 

E fiquei-me a cismar. Além, a Lua triste

40 tinha molhada em pranto a palidez da face...

(Que bom seria ouvir, se a Lua nos contasse,

os romances de amor a que dos céus assiste!)

 

Não sei por que será que os aspectos de agosto

me convidam a cisma, a hora do sol-posto!...

 

                            Traz dedicatéria a Carlos Torelly. 

 

  

SONETO DE UM PAI

 

         Vê-la crescer, florir — viço e perfume;

         Já sorri; quer falar; tartamudeia;

         Diz "mamãe" e "papai" sufoca o ciúme. 

         Os dentinhos lhe vêm.  Anda.  Chilreia.

 

         Traz a casa de risos sempre cheia.

         Vai ao colégio, mas com azedume. 

         Aborrece as bonecas.  Cresce alheia

         À formosura e à graça que resume.

 

         De moça tem cismas e alvoroços.

         Põe vestidos compridos; fala pouco,

         Suspira, sonha, anseia e pensa em moços.

 

         Vê-la como fulgura numa sala...

         Envaidecer-me e... chorar como um louco

         Quando o noivo vier arrebatá-la!



 CHUVA DE ESTRELAS

Li uma vez em páginas antigas

que, se uma estrela cai do céu clemente,

concede tudo o que lhe pede a gente.

Como as estrelas são nossas amigas!

 

Por isso agora, insone e sem fadigas,

fito os céus toda a noite atentamente.

Chovem estrelas… E eu: – Astro fulgente,

quero que eterno o nosso amor predigas!

 

– Faze-me bom! Conserva-lhe a doçura!

– Estrela, dá-nos paz, serenidade!

– Que a nossa filha seja linda e pura!

 

Doiradas ambições! Como dizê-las,

se elas são tantas? Deus, por piedade,

manda que caiam todas as estrelas!

 

FEIA

Feia!... Como isso dói na tua alminha débil!
É nobre a coitadita, e muito a contraria
ser forçada a morar numa tal morada...
Eis aí porque a vejo amargurada e flébil.

E é por seres assim UE eu e quero assim tanto,
com este amor tão limpo e tão sem egoísmo,
pois logo a sujaria o meu sensualismo,
se animasse essa carne algum sopro de encanto.

Toda vez que me vem de tua alma perfeita
esse ar de doçura e pesar sossegado,
evocas-me o sabor que já tenho encontrado
em certos frutos sãos, mas de casca suspeita.

Água fresca bebida à beira de uma fonte,
em mau copo de folha, enferrujado e gasto...
Como deve bater penosamente casto,
sob o teu peito murcho, o coração insonte!

Borboleta que sai de um casulo rugoso...
teu sorriso não traz convites para o beijo:

antes pede perdão... manifesta o desejo
de que não repare em teu corpo anguloso.

Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,
porque viste alguém rir de teu porte mesquinho.
Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:
— Que bom se fosse cega a humanidade toda!

Entristeceste ao ver, numa revista de arte,
um “tipo de beleza”... E terias a palma
se fosse dado a alguém fotografar tua ama...
— não havia mulher tão linda em toda parte.

Dói-te se ouves falar, quando estás numa roda,
na formosura desta ou daquela mulher.
Vês em cada semblante um motejo qualquer...
e descreste, por fim, dos recursos da moda.

Imagino que horror dever ter aos espelhos!
E a crueldade da água em que lavas o rosto
há de forçosamente encher-te de desgosto,
repetindo que és feia e dando-te conselhos:

— Que não tenhas vaidade e não sejas faceira...
Parece-me que a ti um tal conselho é inútil,
pois tua alma sadia, abençoada e dúctil,
é uma flor que nasceu dentro de uma caveira.

                      (Via sacra, 1902)

 

         CATAVENTO

 

Vim sarar tédios, longe da cidade,

a convite e conselho de um amigo,

neste sombrio casarão antigo,

onde tudo tem ares de saudade.  

 

— " Vem para o campo que a paisagem há de

curar-te". Mas, curar-me não consigo:

ontem o riso esteve bem comigo;

 hoje me sinto cheio de ansiedade.

 

Sou assim, como as asas do moinho

 que, lá distante, à beira do caminho,

 por entre casas velhas aparece:  

 

Gira ao norte.., ora ao sul.., depressa.., lento...

Parece doido aquele cata-vento!...

Mas como ele comigo se parece!

 

 

COM O SOL 

 

— "Anda depressa, ó Sol, que estás parado!

Que fazes tu aí, Sol imprudente?"

Este maldito Sol, ultimamente,

tem se tornado o meu maior cuidado!  

 

Essa que eu amo, mora num sobrado,

e o Sol, que a quer também, pára-se em frente:

e até que o Sol se canse e, enfim se ausente;

a janela é deserta, e eu, desolado.  

 

  — "Sol, vai-te embora!" E, quando o Sol vai indo,

e Ela aparece, eu desespero, e grito,

por ver a noite. que já vai caindo:  

 

— "Sol, pára um pouco!..." E o Sol, sem me escutar,

se esconde, enquanto eu lhe suplico, aflito:

— "Sol! por favor, ó Sol! vai devagar!..."

 

 

CHUVA DE ESTRELAS

 

Li uma vez, em páginas antigas,

que, se uma estrela cai, do céu clemente,

 concede tudo o que lhe pede a gente.

 Como as estrelas são nossas amigas!  

 

Por isso, agora, insone e sem fadigas,

 fito os céus, toda a noite, atentamente.

 Chovem estrelas... E eu: "Astro fulgente",

quero que eterno o nosso amor predigas!  

 

Faze-me bom! Conserva-lhe a doçura!

Estrela, dá-nos paz, serenidade!

Que a nossa filha seja linda e pura!  

 

Doiradas ambições! Como dizê-las,

se elas são tantas? Deus, por piedade,

 manda que caiam todas as estrelas!

 

 

 

 

GAMA, Marcello.  Via sacra. Versos.  2ª. edição.  Porto Alegre, RS: 1918.  “Impresso nas  oficinas typographicas da Livraria Selbach de J. R. de Fonseca & Cia.” Foto do         poeta no frontispício.  58 p.  15x23 cm.  Col. Bibl. Antonio Miranda

 

VIA SACRA

 

O caminho sagrado, esse dos sonhadores

que sobem, a cantar, a montanha das Dores,

tendo os pés a sangrar e uma lyra por cruz!

Caminho do Ideal, estrada que conduz

a uma terra de amor e de dias risonhos,

desde muito sonhada em mentirosos sonhos,

e onde querem chegar, subindo entre alcantis,

surdos á multidão eterna de imbecis,

os Poetas, os Bons, os Visionários todos

que acreditam no Sonho e na Chimera...— doudos!—

Jardineiros da Dor, coveiros da Illusão,

que a regar e a enterrar já têm, no coração

— um viçoso jardim, e n'al'ma — um cemitério;

maldictos, para quem a Ventura é um mysterio,

porque quando suppõem haver chegado o -— Em fim!

surge mais uma curva... o caminho é sem fim.

 

 

NUM LEQUE

 

Este leque perfumado

traz-me agora ao pensamento

aquelle antigo dictado:

Palavras, leva-as o vento.

 

Si estiveres te abanando,

nunca digas que me queres,

porque o vento irá levando

as palavras que disseres. 

 

 

GAMA, Marcello.  Via sacra. Versos.  2ª. edição.  Porto Alegre, RS: 1918.  “Impresso nas  oficinas typographicas da Livraria Selbach de J. R. de Fonseca & Cia.” Foto do         poeta no frontispício.  58 p.  15x23 cm.  Col. Bibl. Antonio Miranda

 

 

HYEROGLYPHOS

 

Já fui como um soturno e triste prédio

que estivesse alugado á Dor e ao Tédio;

mas hoje, em vez de ser o que era d'antes,

inda sou mais ruidoso

que uma casa onde morem estudantes.

 

 

Ninguém mais orgulhoso!

 

Um soldado, na guerra, ao tomar um trophéo,

não faria, por certo, um tamanho escarcéo.

 

Agora vibro de uma tal maneira,

que meus nervos parecem

cordas de violinos.

Dentro de mim fanfarras tocam hymnos,

saudando uma bandeira.

 

Tudo por causa de um chapéo de plumas!...

 

Quem tem tristezas, que me mande algumas,

que alegrias demais, quasi endoidecem...

 

Passaste, e o teu olhar penetrou-me no peito,

como um raio de sol furando uma floresta.

E lá se vae um lírio, a boiar entre espumas:

— meu sonho sobre o teu chapéo de plumas.

 

E eu fiquei de tal geito,

como gente de aldeia assistindo a uma festa

á gloria do padroeiro do logar.

 

Nada como se amar!

 

Tu'alma é uma partitura de Verdi!

 

— Dizem-m'0 as tuas mãos afiladas e santas,

o teu perfil romântico e dolente

que beatífica a gente,

e as romanzas que cantas

— harpa que no ar se etherifica e perde. —

 

Teu corpo d'oiro é o libretto, um poema

que a Natureza anda compondo aos poucos,

com rimas de crystal e versos loucos...

Original o thema!

 

Por isso desatino

e sempre indago, quando vaes passando,

quem é que anda na rua recitando.

 

Tu caminhas em verso alexandrino,

medindo os hemistichios

e elidindo vogaes — que são teus pés doirados.

Não ha versos errados...

Quem achar erros no teu passo, indique-os!

 

 

 

Extraído de MOISÉS, Massaud: O Simbolismo.  São Paulo: Cultrix, 1966, p. 179-185:

 

MARCELO GAMA

 

          Marcelo Gama, pseudónimo de Possidônio Machado, nasceu em Mostardas, Rio Grande do Sul, a 3 de março de 1878. De índole irrequieta e boémia, autodidata, viveu do jornalismo e dum modesto emprego em casa comercial. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, continuou a levar a mesma vida de sonhador e noctívago. Faleceu a 7 de março de 1915, de modo inusitado: foi lançado fora do bonde em que viajava, dormindo, em plena madrugada, sobre os trilhos da estrada de ferro, na altura do

Engenho Novo.  Publicou seus livros em Porto Alegre: Via Sacra (1902), Avatar (1904), Noite de Insónia (1907).   Em 1944, a Sociedade Felipe d'01iveira (Rio de Janeiro) publicou-lhe as obras completas sob o título de Via Sacra e Outros Poemas, acrescentando aos três livros mencionados os Dispersos do poeta. Teria deixado, ainda, um poema inédito e talvez incompleto, o Violoncelo do Diabo. Segundo recorda Álvaro Moreyra nas páginas finais da edição de 1944, Marcelo Gama teria inclusive "cometido" a revista Salomão, levada à cena no ano em que apareceu Via Sacra: 1902.

          Apesar de haver produzido relativamente pouco, Marcelo Gama ocupa lugar especial na galeria dos nossos simbolistas. Sua poesia destaca-se logo pela originalidade, em parte porque sustentada em modelos que não eram os mais cotados no momento, e sobretudo porque nascia duma sensibilidade rara entre nós. De tal modo, que o poeta acabou sendo um legítimo precursor do Modernismo, pela forma, aberta e avançada, e pela

maneira de focalizar determinados temas.

          Marcelo Gama filiou-se, mais do que qualquer outro simbolista, à poesia do cotidiano de Cesário Verde, por sua vez dependente do influxo baudelaireano. Entretanto, é necessário não exagerar a carga de influência que teria recebido do poeta português, pois nesses casos sucede haver mais coincidência de temperamento que outra coisa. De qualquer modo, o paralelo impõe-se: ambos se voltam para os temas do cotidiano banal,

mas discordam na forma como procedem. Em Marcelo Gama, nota-se uma nervosidade, uma ira e uma angústia, que lembram nitidamente a Manuel Laranjeira, escritor português cuja obra poética, todavia, somente se publicou em 1912, sob o título de Comigo. Leia-se este breve exemplo duma tendência permanente em Marcelo Gama, tirado do poema "Eu":

 

Nunca mais sofreria esta dor sem remédio

que suporto à mercê dos meus nervos doentes, só

 

          Por outro lado, a cólera e a angústia do poeta gaúcho correspondem, como tendência de espírito, à ironia ácida e desdenhosa de Cesário Verde: em Marcelo Gama, a ironia, quando presente, é branda ou sufocada porque, contrariamente ao que ocorre com o seu mestre, ela regressa ao sítio de onde partiu, ou seja, o "eu** do poeta.  Compreende-se, por isso, ter sido parcial o influxo de Cesário Verde: o poeta rio-grandense, visto que está mais debruçado sobre os parapeitos do seu mundo interior do que sobre as realidades circundantes, não pode ser tido como um poeta "realista".  Na verdade, assemelha-se ao poeta português não propriamente pela temática, mas pelo processo empregado na sondagem do "eu" e dos motivos cotidianos, ou antes, pelas imagens e pelo conjunto da dicção poética, como

se pode ver em "Versos de um Convalescente":

 

Doido! imaginas tu que por teres o verso,

és capaz de mudar as normas do Universo!

 

Oferece combate, enquanto em seu início,

à anemia moral! Põe os nervos no hospício!

 

Só então pude ver como era desgraçado!

Chorei, chorei, chorei como um desatinado!

 

          Assim, seu cotidianismo não é tão "alucinado", "delirante", quanto o de Cesário Verde: embora se repare equivalente riqueza de metáforas, mesmo nos momentos mais agudos se afigura ordenado, equilibrado, o espaço poético criado por Marcelo Gama. O longo poema Noite de Insónia, — decerto o ponto mais alto de sua respiração decadente e simbolista, apesar do clima surrealista que o poeta alcança evocar a partir do seu título, — exemplifica-o à perfeição:

 

Tenho alucinações auditivas: escuto

um longínquo rumor contínuo de engrenagens.

 

Nas brumas do meu ser vão-se esgueirando imagens

sensoriais: obsessões de amarguras enormes;

perturbações mentais quase epileptiformes;

desalentos que sofro em meus dias de acedia;

dramas de vida obscura e lances de tragédia.

 

          É que geralmente Marcelo Gama guarda em si um temperamental e um hipersensível sob a capa da extroversão e do desregramento ("Todo este mal, toda esta desventura, / vem do sentir e amar em demasia", do poema "Taedium Vitae"). Por isso, salvo contadas exceções, ele evita de assumir atitudes cínicas as quais, quando existem, podem explicar-se como espontânea manifestação de seu pendor para os temas do cotidiano. Daí a dualidade em que vaga sua poesia, certamente em razão da própria bipolaridade de seu temperamento, oscilando sempre entre posições extremas. A um só tempo, odeia e ama o burguês ("Hostilizo o burguês, mas confesso, entretanto, / que acho um belo ideal o da vida burguesa", de "Eu"), despreza e inveja o insensível ("Como é feliz a gente / que insensível assiste a alheias penas!", de "Taedium Vitae"; "Que bom ser imbecil como certa gentinha, / e incapaz de sentir a opressão da paisagem...", de "Horas Pardas"), e aprecia e desaprecia a vida moderna ("Enfim, sempre que eu cismo / nisso que constitui a existência moderna, / vêm-me ânsias ancestrais de regresso à caverna", de Noite de Insónia), nutre amor e desamor à mulher "fatal" ("submisso à mulher quando a mulher é bela";num vórtice a saudade me envolve e arrasta / para junto da que é inconfundível", "aquela que ficou lá na minha província...", de "Mulheres"). Afinal, esse dualismo lembra o conflito de Cesário Verde, indeciso entre o campo e a cidade.

          Poeta "moderno", inalando a atmosfera das ruas como um cronista interessado no dia-a-dia mais frenético (veja-se o poema "Mulheres"), longe da torre de marfim em que se deleitavam alguns nefelibatas, nem por isso vincou a faceta empenhada do seu caráter. Com efeito, seu socialismo e seu antiescravagismo diluem-se em utopia ou indignação emotiva, como se pode ver no "28 de Setembro", em alguns trechos da Noite de Insónia e no  Avatar. Neste, observa-se, a par dum socialismo incipiente e ingénuo, outra característica marcante, e um tanto inesperada, de Marcelo Gama: o seu portuguesismo. Claro, o afeiçoamento a Cesário Verde poderia esclarecer parte de sua lusofilia, mas para uma explicação global, haveria que invocar outros fatores, de ordem biográfica e cultural, o que, porém, ultrapassa os limites destas considerações. Em Avatar, o amor às coisas portuguesas revela-se na sintaxe e mesmo na psicologia das personagens, que lembra a literatura dos famintos, dos humilhados e ofendidos à Raul Brandão e João Grave, e que promana dos escritores russos do fim do século, Dostoiewski à frente. Mas esse portuguesismo, recorrente noutros poemas, toma feição saliente e digna de nota por causa da inclinação classicizante de Marcelo Gama. Em verdade, a uma dicção despojada, fluente e espontânea, que faz supor a frequentação dos clássicos do vernáculo, se soma o uso de estruturas poemáticas de remota tradição lusíada, como se vê nas composições seguintes: "Bucólico", "Quadras", "Versos de um Coração", "Trovas", "Vilancete", "Bonita e Feia". Atente-se para o último:

 

Bela, mas fria.   Fria, mas bonita.

Misto de graça e de melancolia.

Cedo gelou aspérrima invernia

o coração que no seu peito habita.

 

Por que bonita, sendo assim tão fria?

Por que tão fria, sendo assim bonita?

De algum polo talvez, flor esquisita,

exilada, a morrer de nostalgia.

 

Foge do amor, religião que evita,

desconhecendo a sua liturgia,

e baixa os olhos, quando alguém os fita.

 

Bela que a indiferença desafia!

Mas, de que serve ser assim bonita,

                    sendo bonita, mas assim tão fria?

 

          Desse modo, perfilando ao lado dos que, "surdos à multidão eterna de imbecis, / os poetas, os bons, os visionários todos que acreditam no sonho e na quimera" (de "Via Sacra"), Marcelo Gama salienta-se pela varonilidade de sua mundividência poética, apenas algumas vezes enternecida de "mistério" e de vaga comoção (como "No Dia de Finados", "Estrela Ignota" e "Chuva de Estrelas"): versos másculos, fortes, cortantes, como só raramente encontramos em nosso Simbolismo. Original, inconfundível com os seus companheiros de estética, e integrando sem o saber as vanguardas poéticas da Europa, seu legado de arte garante-lhe um posto de realce, entre os nossos poetas simbolistas, além de torná-lo um testemunho e um documento indispensável para os que desejarem escrever a história "interna" das origens do movimento revolucionário de 1922.

 

**Marcelo Gama, Via Sacra e Outros Poemas, Rio de Janeiro, Edição da Sociedade Felipe d'01íveira, 1944, p. 11.   Todas as demais citações serão extraídas desta edição.

 

 

Página publicada em outubro de 2008; ampliada e republicada em abril de 2014. Ampliada e republicada em dezembro de 2014.




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