LUIZ DE MIRANDA
nasceu em Uruguaiana em 1945. Ex-estudante de Zootecnia, Teologia e Filosofia. Jornalista e publicitário, colaborador do Jornal Movimento, Caderno de Sábado do Correio do Povo, Suplemento Literário de Minas e outros. Em 1971 conquistou o Prêmio Estadual de Poesia.
OBRA: ANDANÇA, Cadernos do Extremo Sul, Alegre-te, 1969; MEMORIAL, Ed. A Nação/IEL, Porto Alegre, 1973; e SOLIDÃO PROVISÓRIA.
Poemas extraídos de: CADERNOS DE CULTURA GAÚCHA. 6 Poetas Gaúchos: Armindo Trevisan, Carlos Nejar, César Pereira, José Eduardo Degrazia, Luiz de Miranda, Tarso Fernando Genro. Porto Alegre: Diretoria de Atividades Culturais, Assembéia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 197-? 72 p.
SOBREAVIDA
Sobreavida deponho
desde Uruguaiana
de uma rua secreta
a tudo o que nela era
pedra, pó, brilho de árvore
contra os olhos
respiração de grama
debaixo dos pés
De um tempo que o viver
era ir ao esmeril do sol
movendo nas hélices de abril
os aniversários
o tempo escorregando para dentro da memória
De um tempo, lá em casa
ontem e hoje
esperança no meio do lábio
de lixa contra o léxico fácil
de chinelo à beira da cama.
Lá em casa
não se mora mais
a vida é depositada
como num álbum de família
é uma fotografia secreta
que se movimentou um dia, um dia
e hoje está quieta
de bruço num móvel qualquer
à porta não há mais
a estopa, a chave
agita-se à entrada a ferida grave
que é o tempo corroendo à madeira
não há mais a fome de ir embora
e ficar pulsando
fechado
como um relógio
Lá em casa
minha mãe Francisca
espia minha vó Francisca
que detrás de 110 anos espia
como se viva
o rumor de escuro
agora calado na minha face
o rumor de sal
(de charque na cozinha)
de pó na minha pele
A casa não há mais
mas dentro
o coração do homem é uma casa
a artéria principal é o corredor de ar
que desce dos pulmões
que translada a fala sobre o fogo
e sobrevive ao pé do ouvido a palavra
que um dia foi à cidade
e os amigos enfiados nela, depois
pelos cárceres debaixo da tarde
os amigos, depois, dentro da renúncia encarnada
debaixo do solo
Sobreavida deponho
à esquerda
o astigmatismo sobre objetos próximos
como Imposto de Renda, SPC, escova dental
sobre o que entulha no hálito
e outros objetos esquecidos
como tinteiro, pena, mataborrão, classe estudantil
e o depósito de folhas no quintal
Sobreavida, aqui e agora
é mais cara a pulsação de sangue
o barulho estrábico das multinacionais
o contrato de risco
o petróleo
e Allendre morto
tudo à mesa
como num quadro surrealista
e cá dentro o coração baqueia
sua tristeza arterial
e sob tramelas
inauguramos um destino mais feroz
a colocar a indagação de flor
surgida numa estação qualquer
(De “Solidão Provisória”, inédito)
DESTERRO
Não sei como se instala
o estampido no peito
sei o incômodo
de uma bofetada arterial
Sei do que vem
como o levantado das folhas
de outono
e o que se alteia
é mineral quebradiço
antanho ou espelho
de se rever por piedade
o que de nós ficou apenas como previsto
O que se vive agora
faz sentido todo o tempo
é presilha certeira do ganho
da perda
que por mais ignorada
é sempre dor, embora coagulada
O que se vive agora
é sempre mais difícil
o défice da tristeza lesa
e a lisura do silêncio
é branco quase lousa
O que se vive agora
é todo o tempo
na rua Aquidaban
onde fui de olhar estático
o calor tramitando no chão
o renovado mover da manjerona
e o que ficava era luz de abril
pobre e febril
como a pele do sono
Lidar com o que se vive
nunca pude por inteiro
era veloz demais o que vivia
era traiçoeiro demais o que ficava
e cá eu fico mais só
à espera do que seja declarado
como água derramada
o clarão destampado da manhã
Cá eu sei pouco dos estampidos noturnos
do que voa dentro do escuro
como a bala que um dia me matou
como aquela, outras balas voam
muito pouco se pode
raro é o dia que alguém lê
mas o poema é tudo
sobretudo
movimento
O que se vive
nos delega o jogo subtraído
que é vida, escuro porão,
roupa de brim veste-se hoje
ao fim
ou desde a lucidez que a morte é
ou por últimos somos
diante do interrogatório
uma sombra dura
uma resistência que sangra
(De “Solidão Provisória”, inédito)
BUENOS AIRES, BUENOS AIRES
Buenos Aires, Buenos Aires
somos todas as distâncias
num mesmo parentesco
dentro da polia de ar
que é o vento
do condensado às nuvens
que é a chuva
em Nuestra América
onde viajamos distintos
sob a mesma disciplina
de cantar e cantar
o que dela nos ensinam
seus campos de trigo e espera
Cantar à parte da vigia
estabelecida pelos donos do poder
e domamos o destino
a cabresto e raiva
e o viver desatamos
onde ninguém atina
somos a mesma disciplina
e uma tarde é uma tarde
apenas na paisagem
o entardecer é a viagem
contrária à via clara do dia
é um copo de bruço
Em Buenos Aires entardecemos
Em Porto Alegre entardecemos
Aqui e lá permanece o provisório
a surpresa a costurar
nossos espaços em branco
Por detrás desse tempo aparente
outro tempo se inaugura: o presente
O presente sempre pressente
até os gritos apagados
que neles vibra um acordo
não desfeito
um olho que espia
de um silêncio afogado
Pelos cantos da casa
um olho clínico investiga
os desaparecimentos e os suicidas
e os que com vida se anunciam
pelo nome
Ao longo desta Nuestra América
a tábua da lei
não obedece ao coração
é um cordão
engolfado de uma adolescente tristeza
O presente vem arreado
de arredores móveis
que liberam o frio da alma
o andamento das folhas
sob o vento
o medo triste de morrer
antes do tempo
Ao longo desta Nuestra América
uma estatística de coragem
caminha e se proclama
de quem de só não desanima
e nos ensina o lado oposto
de desgosto
Em Buenos Aires
Miguel Angel Bustes, Chico Urondo
e Juan Gelman
estabelecem um regime poético
e resistem ao mal nascido
Ás sombras do coração
com palavras secretas
os poetas
inauguram seus poemas
dentro da agonia dos que esperam amanhecer
e escrevem
àquelas ruas de adeuses tão graves
e amigos mortos
e renúncia iluminada debaixo da esperança
ou rumor de armas, livros e coração
se ouve a quilômetros
Em Buenos Aires entardecemos
a morte prematura
preparada duras insônias
e a alma triste de Ferreira Gullar exilado
elege outra luta corporal
onde estamos lado a lado
Em Porto Alegre
por detrás desse tempo aparente
se aquecem a coragem
os bens noturnos da alegria
e o silêncio denso de movia
carregando mortos pela vida adentro
(De “Solidão Provisória”, inédito)
MIRANDA, Luiz de. Trilogia da casa de Deus. Porto Alegre: Sulina, 2002.
MINHA QLORIA E MORRER NO MAR
Todos me vêem
mas sou ausente,
nas ruas de pedra
da minha cidade,
meu nome é lei
nos engenhos do que sei,
e também do que
se perdeu de mim,
um perfume de jasmim,
na rua em que nasci,
em Uruguaiana,
à beira do rio Uruguai
aqui sei o que me ama.
O campo é espelho
da minha alma.
Só ouço conselho
da linha reta da pampa.
Mesmo sem vontade,
vou relhando os aramados,
com os punhais da saudade,
cantam alto na vida,
onde deposito as despedidas,
que o amor se desfaz
na água infiel
que verteu na areia,
e os prélios contam suas vitórias.
Minha glória é morrer no mar,
na onda longa do verbo amar.
O crepusculário é a reza
que burila o que escrevo.
O mundo existe longe de mim,
mas meu mundo
eu recrio em cantos
que são guitarras
das milongas sempre abertas
por estrada deserta.
me sou um homem de Deus.
que se dá à morte nos olhos tens.
A verdade arde mas vive escondida.
nos sóis noturnos da minha vida.
Pelotas, tarde cie 9 de dezembro de 2000.
MIRANDA, Luiz de. Trilogia do azul do mar. Porto Alegre: Sulina, 2000. 302 p
AQUILO QUE SE TECE
a Paulo Peres
Aquilo que se tece
sempre conosco anoitece.
Outras noites são o breu
e o nunca mais,
asilo da solidão
e do adeus,
do que voltará jamais.
Pala nau dos dias
vem o que chamamos
pelo nome,
o que se esconde no passado
não passará a porta grande
onde Deus nomina
os azuis impossíveis.
Talismã no céu.
Talismã na alvura da manhã,
e na alba do meu chapéu
brilha inesquecível Aldebarã.
É indo que somos o impossível,
rangem os ossos de nossa velha carroça.
Vamos ao infinito e ninguém sabe,
nosso grito é vertigem de água
pura do pampa, rio Uruguai
rolando em nossa alma.
Ah, nossa voz, mistura
de onde nasci,
do que vi
na altura da última estrela,
que virou amplidão
que se alonga em ritmos de milonga.
Apenas uma canção que o vento leva
para desfazer no horizonte toda a treva.
Sou o tempo que me deram
milhares de anos
no olho do profeta.
O poeta lê o lenho das águas do mar,
o que nunca termina
que a pampa sempre ensina.
Iremos sempre adiante.
Talismã, diamante eterno,
o vendaval,
o tufão,
o inferno
passam longe de nossa casa.
Vou na asa de meu anjo de guarda,
debaixo da chuva parda.
Um sinal longínquo aponta
para o fim do mundo.
O relâmpago me guia
na verde rama da Poesia.
Minha cara é o trovão no poço profundo.
Porto Alegre, 15 de outubro de 1999.
Página publicada em setembro de 2010 |