QUINTANARES
O pão para a fome
(a outra fome)
Nasceu de lua in(esperada),
da solidão nas esquinas,
de um felino na varanda.
Nasceu de lâmina cálida
como, sempre, foi acesa
no hotel Majestic, a madrugada.
Dessa matéria in(visível)
de silêncio que não cala
de sapato velho de criança,
de frágeis flores
entre sal e pedras,
de um copo d´água, às pressas,
na Selva, às seis da tarde
são teus filhos, sempre, aurora
no espelho das águas do Guaíba
e o pôr-do-sol, do mesmo rio,
o fogo das pa(lavras).
E se Alegrete é um trem
que ficou na curva da estrada
agora, somos, Quintana
que tomamos café com teus fantasmas.
Há um louva-a-deus
no parapeito da janela,
indisfarçavelmente verde.
É preciso ver
com os olhos da alma
e ter fome, sempre!
LIBÉLULA
Leio suas asas leves
nas narinas das favelas
no lustre dos palácios,
no vôo dos sete anos.
Sinto sua asas soltas
no blues dos cegos
no jeans de quarenta e quatro maios,
no olhar dos góticos
Seu corpo é estranho-exótico
porque estranho é o mundo,
belo ao nascer desejos
nas ruas de luas cheias
e no amor da mão no berço.
Se a morte não tem graça
(profundo pesadelo
que as asas corta)
vôo maior, aceso, é a vida
fogo invisível
que a Noite não apaga.
PROCESSO
Rua de ausentes passos
revelam no andar as sementes.
Semeio in(acabados) versos
caminhando sobre cacos de vidros,
de pés descalços
com a cabeça cheia de pássaros.
Rua de fe(ridas) antigas
o coração suporta, pulsa, pulsa
pousando nas mãos luas
e nos rios subterrâneos que a noite tece
o sacrossanto sangue se veste
de um fogo invisível
de um grito no escuro.
Procuro-me, então, no musgo
das pedras do dia
na relva depois da chuva
na amarga saliva da boca vadia.
E embevecido, calo-me:
Nasceu mais um filho
que tem nome Poema!
FRANCESCHETTO, Lari. Espelho das águas. Porto Alegre: Est Edições, 2008. 176 p. Col. A.M.
Diamante
Escassa presença no presente
balizado de facas, de rochedo
estende-me a mão.
Sei da chuva, solidão.
Proteja-me.
Rara pandorga há
viajando céu cinzento
porque acredito
numa romã madura, clandestina
definir-te, por inteira, não consigo.
Quero-te, além de hoje, comigo
porque o amanhã assusta quase
e te preciso.
13-6-1996
Meu mundo
O sol é óbvio,
guardo-o no bolso.
Tenho é luas no corpo.
Todo dia, de mim,
partem barcos
e, nos confins de mim,
das coisas, a superfície
não me con(vence).
Tenho é ruas
que vão dar além,
é lá onde moro
meu jeito
meu consolo
longe do conceito
de certo ou incorreto. Ofereço-te um sonho
que não podes entender
(sempre inacabado);
senta-o apenas.
A chama que me arde
mora além dos olhos
que tu tens.
LITERATURA. Revista do Escritor Brasileiro. No. 28. Ano XIV – JAN/ ABRIL / 2005. Publicação semestral da Editora Códice. Brasília, DF: 2005. Diretor: Nilto Maciel. ISBN 1518-5109
Ex. doação de ALEX COJORIAN
MUTAÇÃO
Eu era onda
na praia deserta,
agora sou marcas na areia
que as águas apagam.
Eu era ânsia
de quem tem sede
de pegar o trem que passa,
agora sou mágoa
de saber que o trem não volta.
Eu era o céu
que o mar abraça,
agora sou réu
por ser de areia.
Meu consolo
o mar sabe:
o sal das águas
as mãos sangram
sara.
***
Página ampliada em fevereiro de 2024.