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JOSÉ ANTÔNIO SILVA
Natural de Porto Alegre, RS, é jornalista e escritor. Publicou O nome do Fuinha (contos, AGE Editora, 2003); Diabo Velho (novela, Ed. Mercado Aberto, 1998); Lá vem o que passou (poesia, Coleção Petit Poa, SMC/POA, 1995); A impressão da cultura (ensaios, Ed. Sulina, 1990); Tiques & Taques (poesia, Ed. Klaxon/SP, 1984). Tem participação ainda em várias coletâneas e antologias de contistas e poetas. Fez parte do grupo Vício e Verso, com os poetas Celso Gutfreind e Jose Weis.
Extraído de:
COLETÂNEA DE POESIA GAÚCHA CONTEMPORÂNEA. Organizador Dilan Camargo. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 2013. 354 p. ISBN 978-85-66054-002 - Ex. bib. Antonio Miranda
Diário do mar
Entramos naquele barco que já partia, saltando sobre metro e meio de mar. O que era menos ameaça e bem mais um desafio à nossa potência, à nossa arrogância juvenil.
Entramos a navegar sem bússola ou prévias lições, confiando nas estrelas que desprendiam fagulhas sobre nossas cabeças.
Em alto mar chegamos, e começaram a dar à tona - entremeados às algas - problemas da vida, calmarias, tempestades.
Ficamos sem combustível. O vento nos arrastava para a beirada do mundo - e ríamos em desespero, no tombadilho inundado.
— Homem ao mar!
Amigos, irmãos, iam sendo devorados por peixes e abismos, e deles só boiavam lembranças dispersas, que as correntes arrastavam.
Enfim atracamos em alguns portos, enseadas. Água, vinho, gemidos e gargalhadas. Cabelos de sereias em nossos colchões.
Desaparecimentos havia, motins, deserções. Traidores se mostravam: faca nas costas. Costões onde o barco dançava, ao largo, na escuridão sem farol.
Uma tarde perdemos o leme, e o céu se fechou para nós. O atol de peixes coloridos foi nosso inferno e naufrágio.
Nesta ilha encontrei água doce, e até companhia. Mas inda sonho que o velho barco, ou outro igual, virá me resgatar (embora perceba seu esqueleto estalando sob o sol, na maré baixa).
Navios passam com elegância sobre a linha precisa do horizonte: sigo remendando a vela.
Quem ?
a pele da água
sustenta e exibe
o furo na malha.
és o peixe
que escapa?
ou o pescador
que falha?
Eus meus
Um dos meus
dos eus meus
sempre quis ser
um alpinista
preso pelos dedos
no gume do monte
não social
Outro pretende
tocar blues
transmutando negra dor
e na gaita ser o tal
Há uma face
na sombra
que por vezes
quer matar
esfolar
sentar o pau
É minha cara
também
o repórter que
amassa e prende
a timidez
no bolso
e tudo questiona:
profissional
Um dos Josés
ironiza o mundo
debocha
raia a crueldade:
rega a raiz do mal
Outro eu
dos muitos
que palpitam
sob essa casca
é um monje
que compreende
tolera
e caminha
na estrada do Tao
Volta e meia
no fogo do perigo
assoma
o mais covarde e vil dos eus
à porta da tabacaria
congelado pelo medo
do cão
da noite
do soco
do eu:
um rato
tal e qual
Nesta casa caiada
de tantos quartos
cores e rachaduras
moram
dormem
sofrem e gozam
o eu pai
o eterno filho
e um espírito
rasante
com um rosto
construído
em sal.
Página publicada em maio de 2018
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