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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

JOÃO-FRANCISCO FERREIRA

 

FERREIRA, João-FranciscoO falar dobrado.  Porto Alegre: L&PM, 1994.  168 p. 14x21 cm.  ISBN 85-254-0452-7   Ex. bibl. Antonio Miranda.

 

João-Francisco Ferreira, que nasceu em Pelotas (RS), conclui seus estudos na Sorbonne local, mas deixa logo a cidade, para ganhar o mundo, como doutor, livre-docente, catedrático concursado na Filosofia da UFRGS, diplomata por circunstância (Diretor do Centro de Estudos Brasileiros do México), professor universitário nos EUA, conferencista internacional, livros de poesia e prosa editados aqui e no exterior, mantendo porém em segredo a ídéia inimaginável de retornar ao burgo natal, onde aos quinze anos já lecionava adultos no ginásio "fantasma" de Celso D'Avila Sellas, e quase ao mesmo tempo exercia atividades como mandalete do apopléctico Gustavo Montoni, apontador de jogo do bicho na Tabacaria do Velho Ernesto, autor de artigos quase didáticos na Opinião Pública, poesias, contos, crónicas, no Diário Popular, afortunado e feliz aprendiz de gigolô, balconista de uma loja "fantástica" de artigos para Carnaval, cabeleireiro de indigentes vivos e mortos da Beneficência Portuguesa, principiante de torneiro mecânico na empresa de galvanoplastia, joias e cutelaria do Pai, a Casa Luzitana; uma vida enfim um pouco antes e muito depois dos quinze (senão até hoje) sempre no exílio, no silêncio e na canção, mas com valente ironia - a vida de um escritor medularmente político, queira ou não, disfarce, ou desmintam-lhe a tendência livros como Amor é Labirinto, Así Es, Limite do Amargo, e a própria Casa Luzitana, obsecado pelo destino grave do homem, decididamente contra tiranias ou democracias cômico-formais, e sobretudo do mal tão abjeto da inautenticidade humana. "Sua liberdade é uma invocação à nossa liberdade", disse de seu Poética Brevíssima, no México, Evódio Escalante. Afora os três livros que a L&PM tem no prelo, produz no momento Angelus Novus - Cesta Hominum per Vates.

 

 

Agora que deixei para trás os anos
vidas enganos
                       armadilhas
do podre reino ocidental

que fiz e desfiz mitos
malas e mandamentos

que fui hóspede-congressista-enfatuado nos salões
do Plaza Victoria
e até mafioso-ser-lúdico nas tascas da Rive Gaúche

que atravessei desertos naquela Fiat nostálgica tão pernóstica
com céu azul
e tão só quanto um bárbaro
vaqueiro do Oeste
(ou lagarto
bicho que nasce e morre em literal abandono)

que chorei nos mortiços alagados de Veneza
sem temor nem pena

que perdi os cabelos e as mais engraçadas vergonhas
numa só noite de Manhattan-Sul

que andei por desafio aos fantasmas nu e sombrio

que bebi rum e cicuta dias e dias
sem ao menos pestanejar

que escrevi dezenas de páginas da carta que Sartre não recebeu

que tive filhos marinheiros

que vi limites que vi travessias
e em vão nelas todas me perdi

que li por sensatez todos os livros
e os queimei após
sem o mínimo remorso

que fiz do Nordeste agonia

agora
nesta quinta-feira de outubro de mil novecentos e setenta e seis
às seis horas da tarde
com as mãos à cabeça
recomeço a viver
         assentado
no fio da navalha

*

 

Viver não é possível
Morrer é possível
Quem vai morrer desperta

Prepara a morte
com data marcada

Esta morte vai ser um dardo

                                      ato de fé
                                      ou guerra

A morte pode ser vida às avessas

*

 

Como se faz o poema?
Como se faz a ideia?
Como se faz a cidade?
Como se faz a revolução?
                               a vida

O homem faz o poema
O homem faz a ideia
O homem faz a cidade
O homem faz a revolução
                                 a vida

O poema
a ideia
a cidade
a revolução
a vida
           fazem o homem

*

 

Alguém procura a poesia
e só as ruas respondem
num afogar de estrelas

Não sei as palavras do poema
Mas nossa voz pode ser a bússola
que conduzo à cidade
como um fardo dolorido
uma criança

 

 

Página publicada em abril de 2018


 

 

 
 
 
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