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JAYME PAVIANI
É professor de filosofia na Universidade de C do Sul. Além de duas dezenas de obras científicas, publicou os seguintes livros de poemas: Matrícula (1967); Onze horas úmidas (1974); Águas de colônia (1979); O exílio dos dias (1982); Agora e na hora das origens (1987); Antes da palavra (1998); Agenda de sentidos (2002); Redemoinho (2011). Publicou, igualmente, os livros de cônica: O pomar e o pátio e Sobre todas as coisas.
COLETÂNEA DE POESIA GAÚCHA CONTEMPORÂNEA. Organizador Dilan Camargo. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 2013. 354 p. ISBN 978-85-66054-002 - Ex. bib. Antonio Miranda
LAUDES
(l)
Louvemos os dons, o trabalho,
Todas as formas de regresso,
As portas abertas, os retratos, o teto
Que ninguém observa, porém, severo
Sempre igual e frio nos protege;
Louvemos todos os objetos,
Mais o rio, a fonte, a colheita dos limões,
Todas as conexões, o que nos une
Aos outros, os espelhos rotos,
Todos os desconhecidos, e o sangue
Das veias em silêncio.
Todos falam de seu corpo
Das páginas do livro, da vida
Casualmente meditando a morte.
A semelhança os une
No lume, a luz trémula
Alcança o âmago que somos,
Antigo pomo.
Todos os cinco, em síntese,
Na noite estendido o corpo no chão
Atapetado, os cálices nas mãos,
Como deuses antigos, o vinho e o pão
Da aurora rezam as matinas.
Descalços, à vontade, cada qual
Com sua solidão,
Lavado o pó dos caminhos
Livres do tropeço das pedras
Em segredos, não secretos,
murmuram signos reconhecíveis
Todos querem a vida
O perdão das sombras
Os círculos que giram na noite.
Palavras limpas e úmidas
Como margens de bosques,
Sem agenda de viagem,
Apontam o Reveillon do dia
As férias de verão, as folhas
Do outono acendem
As luzes da cidade e as estrelas
Além da janela,
E assim sabemos:
Os espelhos necessitam
A moldura da escuridão.
Só a vida ilumina
Segundos de anos luz.
A existência prescreve
Os limites da fala,
Pois é difícil recordar
Depois de ter nascido.
(II)
O diálogo é um rio turvo.
E cada um com seu remo
Navega em seus monólogos
Contra a correnteza
Da vastidão informe do dia.
Inclinados agora na almofada
Descansam dos mitos, dos sítios,
Dos ritmos inexplicáveis
Do imenso vazio do ser
Desses encontros
Longínquos e graves.
Em repouso, o tempo pára.
Em movimento, o tempo foge.
Todas as identidades
Se fortalecem nas diferenças.
Rindo eles se confessam
Põem à venda belos resorts
De frente a campos de golfe.
Contam histórias de carros
Que se chocam. Nada é intacto.
Seis morrem, um ainda vive
Graças às novas profecias.
Os adivinhos advertem
Os cegos veem, os surdos ouvem,
Apenas os amigos gritam,
Todavia, sem serem ouvidos.
As ideias claras dançam
Nas linhas das cadeiras
Nos rastros da emoção
Alastram-se em toda parte
As faces invisíveis do visível.
A água, a terra, o ar, o fogo
Disfarçam-se em formas intuídas
Nos campos geminianos,
A dor e a alegria suspensas
Nos detalhes reside a beleza.
O relógio para a noite.
Serve-se novamente o vinho.
Os lábios suavizam brisas
De consolo e de absoluto.
Os cincos entes revelados
Amanhã estarão mortos:
Importa viver o momento.
As coisas permanecerão
Além de todo olvido humano.
Nada de fechar as portas.
É preciso seguir, talvez sós.
O vento forte do deserto
Protege os que sabem
Procurar sua alma.
Na hora da ceia louvam-se
As qualidades do alimento,
Mas os convivas sofrem
As contingências humanas.
É costume beber então
O suco de cada olhar.
E exortar os demónios
Os perigos da carne,
Recordar grandes ideias
O lado obscuro da vida.
Talvez a arte seja a saída.
(III)
A noite também ilumina
Exercita o discurso
Estende os braços das sombras.
Ela é abelha. Rainha.
Bela de traços, serena,
De peregrinas angústias.
Rocha e flor à beira do tempo.
De múltiplas margens.
Perpétua chama de sonhos
Rosa de afagos continuados
Nos modos de ser E nas obras.
Ele é médico de almas
Da melancolia dos dias
Que os poetas e os artistas
Invejam nos loucos.
Ele empresta abrigo
As pessoas com frio
A fala, depois, o sentido
São as ferramentas da oficina.
Ela é sábia em experiências
Recolhe da mesa do passado
As migalhas, também os passos
Pródigos de sabor. Ela lê
O viés das nossas histórias.
Traz no rosto os traços
De uma altiva estrela.
Ele canta, silencioso, canta
A música lhe nasce dos poros.
A voz é movimento
Do mais longínquo gesto humano.
Ele renasce no nome,
Nas formas doce e amarga das coisas,
O amor existe para servir.
A noite anda alta. Nada falta
À transparência da lua
Girando solitária no céu.
É hora das sombras
Elogiar o sol que tudo vê.
Os cinco partem e retornam
Entre círculos e planícies
O dia é o portal dos signos.
A noite em silêncio descansa
Nos lugares vazios
Da casa e do mosteiro.
Os monges desde sempre vigiam
O livro das viagens está aberto
O luar empalidece o pátio.
As folhas quietas calam.
O Borges em sua cegueira
Narra o último sonho
Da cobra de duas cabeças
E entre as colunas.
O velho monstro dorme
Sem medo de ser devorado
Pelas sombras e pelo vento
Ou pelas águas que vêm do deserto.
As nuvens, durante horas,
Engendram o centauro.
Quem imita os espelhos.
O cavalo-dragão do rio amarelo
Joga com o imperador
O yang e o yin eterno.
Nada é tão extenuante
Os lobos foram devorados
As fontes jorram poesia.
É óbvio que ainda há perigos:
Águas envenenadas, inimigos
Dentes em forma de garras,
Traições, lâminas de aço
Traços de sangue no chão.
No abrigo da noite
Os objetos, as ruas, a cidade
Concretos, belos e complexos
Somente os homens respiram
Mas os pobres de espírito nada veem.
A noite é a casa dos anjos
E de outros seres imaginários.
É onde a dor cresce
E o amor nos fornece.
Está escrito em Coríntios (15, 51)
Com letras fortes e esquecidas:
Eis o mistério, nem todos morreremos,
Mas todos seremos transformados.
O corruptível será incorruptível,
Repetem as melodias de Händel.
O mortal precisa da imortalidade.
Num abrir e fechar de olhos
Os cincos peregrinos da noite
À sombra das fraquezas humanas
Descobrem elos e constroem círculos.
Página publicada em maio de 2018
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