CARLOS BESEN
Nasceu e vive em Porto Alegre dede 1980. É bacharel em Filosofia pela UFRGS, onde também realiza pós-graduação. Escreve poesia desde 1997 e detém alguns prêmios literários regionais, com destaque para o Palco Habitasul Revelação Literária na Feira do Livro de Porto Alegre, do qual foi vencedor em 2004 e 2005. Foi publicado em diversas revistas, reais e virtuais., tendo fundado o Balaio Digital – Sebo Online.
“Eis a estréia de um poeta pleno, mostrando que rupturas também se dão pelo inofensivo, desdobrando em surpresa, replantado de abismos”. “ O que há nos textos desse poeta é o enfrentamento dos múltiplos das existência (de uma existência e, portanto, todas) a partir de uma tematização que, aparentemente, esmiúça, mas que, analisada com atenção, enriquece (profana) o nunca de todo descoberto processo da vida, confirmando as perplexidades do que nele são presenças.” Paulo Scott.
Extraído do SUPLEMENTO CULTURA DE SANTA CATARINA 82
maio 2014 – ISSN 2318-3063
CALIGRAFIA
DO AVESSO
1.
Minha biografia me faz em meu lugar.
Não sei ter uma árvore,
não sei plantar um livro,
não sei escrever um filho.
Meus gestos me refratam,
as folhas se vergam na rasura.
2.
Ao me poupar,
eu me abandonei.
Minha herança corrige
o vacilo do pulso,
me recorda ao contrário,
me inventa sem revide.
Meu desprezo próprio
cavou a gruta de minha figura,
desenterrou as rugas
de meu personagem.
3.
Ser palpável não é ter
a polpa diluída na terra.
Polpa é o filho
com um livro na árvore
a decifrar a velhice do pai
nos veios do caule.
Abraço os galhos,
tento perdoar o desperdício
4.
Póstumo, não me queixo
à caligrafia das chagas:
o que um filho fere,
uma árvore cicatriza.
Minha biografia me cura
em meu lugar.
De
Uma luz no aquário
Porto Alegre: Nova Prova, 2006
CÉU DE ÚLCERA
Estar sobre a terra,
sob um fecho de abóboda:
o céu aperta.
Por mais que me evole,
a água-de-luz me devolve.
Por mais que desafine,
engaveto os ossos na gordura.
Por mais que afine,
a carne, oca, sufoca.
Por mais que escave o ar,
minha cova se estreita.
Sou pouco no fio do osso, porém:
Por mais que eu me reserve,
não sobro em mim.
Por mais que eu puxe o fio,
não termino minha descostura.
Por mais que eu me desgaste,
não me aparo ao desamparo.
Por mais que eu me tolhe,
ainda posso ser colhido.
Estar sob o sol,
uma só nuvem:
o céu sepulta..
ESCUTAR ESCURO
Se converso comigo,
ainda não é monólogo.
Se despisto a língua,
iludo o diálogo.
Falar apara
o exercício da saliva,
palavra esculpida:
o tom excede
a disposição da boca.
O que pronuncio
me põe a ímpar.
Escuto o que se despedaça
pela fenda do lábio:
— o desperdício,
Uma boca dormida.
Ouço o que não sou,
e é como se sermão e cerimônia
Fossem o mesmo hábito.
Se me escuto,
me expulso de casa,
espreito o som pela janela.
Onde a luz penetra,
entra também
o que se cansou do escuro.
A linguagem não espera
que eu me compreenda.
Falar é ateu.
Não carrego
piedade no olhar,
esqueço o alfabeto
a cada som.
Sou lento
para me amparar.
Minha voz
corre como água:
por dentro,
ao fundo.
Estou atrasado
para me converter em mim.
Falo comigo:
falo com ninguém.
Minha concha
perdeu o acústico,
a mão ignora
a mímica da boca:
concha marítima,
eco de afogado.
A LUCIDEZ, DEPOIS
A sombra
quando se derrama:
alento do som.
Toda cegueira satura
o choro do orvalho.
A luz quando orvalha:
sonido do suor.
Toda visão:
um sol derramado
na véspera.
SAL NA PERMANÊNCIA
A manhã
retorna,
o terrível não
se esclarece...
O que me põe
maduro
também me
endurece —
...
e é indócil
como um
dente.
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O poema que ora publicado sai na revista LITERATURA – Revista do Escritor Brasileiro, n. 31, jan/abril 2006, editada por nosso colaborador e amigo Nilto Maciel.
Veja outros poemas do autor em: http://www.germinaliteratura.com.br/cbesen.htm
A FORÇA DO DESARVORAR
I
Não saio de casa sozinho.
II
Espirro, respiro, meu nariz se debruça
sobre o cheiro chegando pelos ombros da cortina.
As narinas janelam no quarto fechado.
III
Desato a falar, minha garganta se abre fonte.
A boca deságua. Mastigo verde,
e as gengivas entendem o líquido como gelo,
o sólido como pedra, o gasoso como fogo.
Meus dentes de estante desenham búzios e absurdos.
IV
Escuto o que despista,
e minhas orelhas se inclinam como se o ruído indecifrado
também fosse balbucio divino (ou sua balbúrdia).
Ouvir já é estar ajoelhado.
V
Encubro-me de mim, meus cabelos escoam neve,
espuma de cílios.
A cabeça: uma genealogia de cavalos.
VI
Ao ler, jogo como jogo os olhos para trás,
faço das pupilas crânios da luz,
afasto os braços como se orvalhasse galhos.
Palavras são brancas como pérola, repetem a névoa.
VII
A visão me adoça para o escuro,
leio preto e branco nas fotografias.
VIII
Engordo feito fruta,
me acresço horizontal,
me constituo paisagem.
IX
A barriga protege um joão-de-barro,
meu pai.
A barriga é um bairro.
X
Tardo como quem seca, não me desloco
sem que os pés produzam diária uma suja biografia.
A lentidão já é alento,
o pólen do sangue se alfabetiza para a seiva.
XI
Carregado de vida, encurvo,
fico próximo dos lábios da grama.
A precária velhice dos ossos
não fratura a condição de semente.
XII
Minhas unhas crescem como se os dedos se renovassem.
As unhas são pá, escavo.
XIII
Sem esperança, me espero árvore.
Despojado, despertenço:
meu corpo me expulsa de casa.
Página ampliada e republicada em dezembro de 2008
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