AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO
Aureliano de Figueiredo Pinto nasceu em 1º de agosto de 1898, na fazenda São Domingos, município de Tupanciretã, filho de Domingos José Pinto e de Marfisa Figueiredo Pinto. Exerceu o ofício de médico, mas por essência foi poeta e escritor. Leia mais sobre o autor em: http://www.chasquepampeano.com.br/biografias.html
De
PINTO, Aureliano de Figueiredo. Romances de estância e querência. Porto Alegre: Editora Globo, 1959. 182 p.
“Poucos livros refletem com mais autenticidade o homem e a paisagem do Rio Grande do que este “Romances de Estância e Querência”. / Lê-los, é sentir a força telúrica do gaúcho andarengo perdido nas coxilhas do tempo (...)” Texto extraído da orelha do livro.
SESTEADA
A Homero Jobim
O andante velho, de cansados olhos,
desencilha ao sol quente o matungo viajado
à sombra da figueira da tapera.
A árvore maternal o acolhe.
Estende a sombra com o maior cuidado,
que o sol, coxilha a fora, desespera.
Quando guri, ali passou tropeando.
Quando moço, passou numa guerrilha
e a figueira ainda é a mesma que antes era.
Velho e só, pobre e enfermo, a vida merma.
Murcham os músculos que de atleta foram.
Fantasma vivo da campanha erma.
Fieira de ossos sob o couro hirsuto!
Desconsolado como antigo salso
de longos ramos pra o chão pendentes.
Oiga! figueira velha macanuda!
Passam decênios nas copadas altas
tal se fossem o frêmito de um dia.
Gaúcho velho! Que sesteias, pobre
e errante e enfermo sob a sombra forte
da árvore da tapera que resiste!
Secou-te o sonho que era vasto e nobre!
Vais repontando em direção da morte
os magros restos do teu vulto triste...
FOGO DO DIABO
Chinita, que foste minha!
Sem tu, não era o que sou.
Tu me ensinaste a ser bueno:
- Sacaste a mágoa e o veneno
com que outra me machucou.
Onde andarás, china minha,
guaxa do rancho dos teus,
florindo a flor sem mistério
do teu corpito gaudério
por esse mundo de Deus?!
Sobre o teu vulto, chinita,
faz tempo que escureceu.
Perdi o teu rumo e o teu rasto
- sovada, a sofrer nos bastos
de outro andarengo como eu!
Teus fundos olhos, chinoca,
são duas sangas cortadas
pelo sol de tanto amor.
Com a chuva e o choro dão flor
como aguapé nas aguadas.
Teus braços são rédea aos xucros,
que domas, com voz ladina,
nos teus seiitos de escrava.
- Dois ninhitos de ave brava
nua arvesita franzina.
Os teus cabelos meneiam
e derrubam sem barulho.
E a tua ausência, ferindo,
dói mais que a neve caindo
pelos minuanos de julho.
Se te alegras, se te coloras
do tom de flor, que ainda lembro,
dos durasnais da tapera
enfeitando a primavera
pelas manhãs de setembro.
Se sofres, teus cílios finos
são como os juncos da tarde
no espelho de uma lagoa.
Porque és tão boba e tão boa
para o destino covarde...
Chinita, que foste minha!
Nunca mais quero encontrar-te.
Tu sabes de cada espera
com a tua alminha de Angoera,
com sangue de Malasarte!
A pobre... quando morrer,
na noite em que ela se for,
verão como ainda tem manhas,
em boitatás, nas campanhas,
o fogo do seu amor...
QUERÊNCIA
Para o velho Domingos
I
Recordo... Um coxilhão, virgem do arado,
alto e estendido na campanha em frente.
Resfolegando a névoa ao sol nascente.
Na noite negra era um fortim sitiado.
Somrbio sob o crepúsculo indolente
nos paradouros acolhia o gado.
Promontório nas rotas di El-Dorado
ao luar e aos sonhos de um adolescente.
Tristão no inverno... Esplêndido na sanha
do estio fugindo... No horizonte aberto
a galopada das miragens foge.
Tão longe... E ainda a paisagem me acompanha
com o encanto das ilhas que no oceano incerto
as minhas naves descobrissem hoje...
II
Por toda parte onde eu andei, Querência,
pedaço de alma, te levei comigo.
A proteger-me como um poncho amigo,
ou estrela d´alva nos sertões da ausência.
Andante, chego ao teu galpão de abrigo.
Fogão e amargo! A missioneira essência.
E, pelo teu conslho em confidência,
forjei meu coração para o perigo.
Quantas vezes na ronda a noite andando
vieste em recuerdo, como irmã, sorrindo,
adoçando a amargura da inclemência.
Por ti, na Vida e no lidar em que ando,
a sorte, ou contra ou a favor, vem lindo!
só pelo orgulho de te honrar – Querência!
LIVRO DOS POEMAS. LIVRO DOS SONETOS; LIVRO DO CORPO; LIVRO DOS DESAFOROS; LIVRO DAS CORTESÃS; LIVRO DOS BICHOS. Org. Sergio Faraco. Porto Alegre: L.P. & M., 2009. 624 p. ISBN 978-85-254-1839-1839-5 Ex. bibl. Antonio Miranda
De: Livro dos bichos:
JOÃO-GRANDE*
A sós, no pampa, ao luar de um grande açude à borda,
anguloso e augural, de tristonha atitude,
— maculando de sombra o amplo cristal do açude —
o joão-grande a água azul de outros rincões recorda.
No meu sonho o pernalta áureas legendas borda:
triste avatar de um poeta entre os da espécie rude,
que exausto de sofrer vertigens de altitude,
traga a lira a estalar na derradeira corda...
Espectral, cismarento, o laquista interpreta
o lirismo doentio das lagoas sem fráguas
cantando ao céu que treme ao fundo da água quieta...
Ou, em meio ao pampa, ao luar, dentro da noite escampa,
— bardo! o joão-grande ausculta a rapsódia das águas
para escrever, mais tarde, a epopéia do pampa...
*O alcatraz das costas americanas tropicais.
*
Página ampliada e publicada em fevereiro de 2023
Página publicada em dezembro de 2011
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