AUGUSTO SÁ
SÁ, Augusto. Cacos de garrafas: collecção de algumas parodias e versos alegres. 2ª. edição correcta e muito augmentada. Pelotas, RS:Livraria Universal de Echenique & Irmão, 1892. 159 p. 15x22,5 cm. “Errata” ao final do livro. “Augusto Sá” Ex. bibl. Antonio Miranda
Veja o E-BOOK:
https://issuu.com/antoniomiranda/docs/cacos_de_garrafas
Seleção de poemas, conservando a ortografia original):
GENESIS
Fiat lux... et sogra facta fuit,.
S. Bartholomeu,, Cap. IV.
Um dia disse Deus, em torvas reflexões:
—,,Não completei o mundo apenas em seis dias...
„ Falta-me ainda ornar as minhas Creações,
,,Com as provas mais fataes do Quanto poderias
—,,0' Força Divinal da Minha Omnipotência!
,,Falta-me dar ao Mar, profundo, a consciência,
,,0 rancor, a tensão e a tempestade ás aguas ;
,,0 equilíbrio á torção e a resistência ás frágoas,
,,E ás lutas as paixões e a garra á violência.
,,Sim ; quero dar ao Mal, Satellite do Crime,
,,uma pujança tal — um tão fatal reclame,
—,,Que pareça ser vil aquillo que é sublime
,,E pareça ser bello o que é nojento e infame !
,,A mulher, já formei... Falta-me agora a fera,
,,Como um pollo animal do mesmo nome e fluido...
„ Já formei a mulher; mas, da mulher—panthera
,,Só agora me occupo e só agora cuido !
,,Quero pois um flagello,—um estupor sombrio,
,,Que consumma e produza o aniquilamento...
— ,,üm tormento que canse a sensação do frio,
,,E mate a pouco e pouco em um supplicio lento l...
—,,Sim !"— continuou mais grave ! ,,Eu tenho nojo ao miúdo!
E, lançando um olhar, fatídico, iracundo,
Para as lepras enristas da pobre humanidade,
Começou a scismar com fria crueldade
Sobre o grave problema:
—,,Vejamos, pensou elle; a minha branca estéma
,,De velho e Patriarcha — excelso por mysterio,
,,Já não è hoje em dia acceita muito ao serio...
—,,E a cáfila mortal dos míseros atheos
,,Já prega por ahi que não existe Deos,
,,E Bem existe mãe que seja casta e virgem !...
,,Pois bem; vou lhes provar que a Minha Santa Origem
,,Não póde admittir o que este aleive encerra...
—,,Mando que desde já baixe uma Sogra a Terra!"
E então com fragor, satânico, flagélico
Que fez estremecer todo o Universo em peso.
— Ouvio-se um estertor — e vio-se o mundo aceso
N'um rúbido terror por esse horror famelico!...
AI QUE PÉ
(Offerecido a um certo pésinho inglez)
Ha um pé aqui na villa
Que me faz tremer ao vel-o,
Não posso encontrar o bruto
Sem hirsar-se-me o cabello !
Sinto assim uns arrepios,
— Uns tremores... calefrios
Pela nuca quando o vejo,
Que pareço estar sentindo
O prazer, o gozo infindo
De chupar um percevejo!...
E' verdade!... Irra ! Que pé!
Que chanca mais collosal!
Aquelle pé — nem é pé,
— Parece mais — pedestal !
Aquillo é mais um prodígio,
Que dá ao dono o prestigio
Que tem quem tanto possue...
E' como qu'uma marmota
Que se mostra n'uma bota
E n'uma bota evolue !...
Aquelle pé, meus senhores,
Não é pé, é... pé de guerra!
Não existe um par igual
Em toda a curva da Terra!
(Havia outr'ora em Pekin
O pé de um tal mandarim
Maior que o eixo da lua
—Pois olhem:
—Nem esse tal!
Podia ser um rival
P'ra o pé do Zé da Falua)!...
A bota!... Meu Deos !... Que bota!
Que Bota-Fogo... Que horror !
(Lá na Corte ella não passa
Pela rua do Ouvidor)!...
Seu salto é d'aço fundido,
A solla è — ferro batido,
E o cabedal de latão...
O elástico, esse—é d'arame...
E a costura — do pregame
Que se emprega em armação!
O todo, emfim, è um monstro
Quando põe-se em movimento!
Parece um mundo que passa...
Parece até pé de vento!...
—Amassa, pisa, escangalha,
—Arromba, escancha, atrapalha
As cousas e mesmo a gente !...
— E eu, por Deos, não cassúo,
Assim que o vejo recuo
E deixo o bruto ir emfrente!...
Pucha pé!... Cun la gran via!
— Barbaridade! — Que pata!
Aquelle bruto, si pisa
Esmaga logo — ou achata!,..
Vá sahindo !... um pé tão bruto
Passa o mar e fica enxuto
Qual si fora uma fragata...
Com mil bombas.... (Que por fim
Lastrar tanto e tanto assim
— Nem mesmo um pé de batata) !...
Arre !... Que o Zé pesa e pisa
Tudo quanto pisa e pesa!...
Pois seu pé é dos que diz-se
Que não se benze nem résa !
— E' um pé, cuja grandeza
Torna um átomo a toêsa,
E toma a légua por metro...
—E' um pé que, logo ao ver-se
Não pôde um homem conter-se
Que não diga:
— Vade rectro!...
REAL E POSITIVO
A UMA COSINHEIRA
Tens um sabor na pelle avelludada,
Uma luxuria tal no teu calor,
Que não posso comer uma fritada
Sem lembrar-me de ti, ó meu amor l...
Extranhas? Pois então?... —E' natural:
E até quer parecer-me que o geral
Dos outros namorados assim sentem...
Lá por elles fingirem não sentil-o,
Ou jamais não fallarem n'este estylo,
Não se segue que não—pois todos mentem...
E tu mesma — quem sabe ? — ó minha amada,
Quando eu beijo-te e sinto-te o ardor,
Não te lembras também de alguma empada
Com pimentas de mais... mas sem sabor...?
SATYRAS
Offerecidas ao sr. capitão Azambuja
O NARIZ DO AMIGO BRAGAS
Anima nostra in dúbio est.
Ha um nariz cá na Escola
Que me faz tremer de susto...
E' um nariz cujo vulto
Seu dono supporta a custo!...
E' um nariz — maravilha,
Que a Serra-Negra similha
N'altura, tamanho e base...
—E' uma tromba tão grande
Que eu temo que ella desande
E ao desandar nos arraze!...
E' um nariz que, supponho,
Que á sua sombra se occultam
Todas as grandes misérias
Que n'estes valles avultam...
E até mesmo me convenço
Qu'aquelle nariz immenso
Provoca ainda um conflicto,
Com esses montes da China,
E o mor da cadeia Andina (*)
Na sombra d'esse Infinito !...
Talvez esse nariz seja
Algum moderno Hymalaia,
Cuja sombra a tudo cobre,
Desde o Hécla ao Itatyaia...
Ou então—o Chimborazo
Que Deus, por um pouco caso,
Deixa assim vagar aéreo...
Ou talvez seja o Nevado
De Sorata aqui lançado,
Por castigo d'este Império...
Talvez... Quem sabe?... (Outro dia
Jorrou fremente o Vesuvio... -
E a bella Nápoles raza
Nas ondas d'esse diluvio...)
Quem gabe si essa montanha
Como o Vesuvio tamanha
Não ameaça erupir?...
—E quem sabe si esse banho
De mônclos, catharro e ranho,
Nos dará tempo a fugir?...
Livre-nos Deus de tal cousa
Nem é bom n'isso fallar!...
Si o Bragas desse um espirro
Quem podia se salvar!...
Qual!... Lá ia toda Escola...
Tremia toda esta bola...
— Ficava o sol moribundo.
E a própria lua abalada
Por este espirro—rachada
Viria cahir no mundo !...
Barbaridade!... Que horrores,
Já não digo — cataclysmo....
Si o nosso Bragas quizesse
Tornava o mundo um abysmo!...
Pobres de nós si elle embirra
Com esta droga e espirra
Por descuido, ou por pirraça!...
Ai pobre da raça humana
Que ao nariz d'um safardana
'Stá sujeita por desgraça!...
* O Popocatepel.
FATALIDADE (*)
f (x)=o
Foste!... Deixaste-me... esqueceste tudo !
Tudo ! — o passado, o nosso amor, meus versos,
As nossas cartas—um libello mudo,
E mesmo os beijos que te dei diversos...
Foste!... Partiste... E os corações immersos
—O meu e o teu—n'este período agudo,
Sentem, agora que se vêm dispersos,
Vaga saudade do que acima allúdo...
Lembras-te?... ,,Fica," (eu suppliquei-te afflicto)
„ Não partas: — fica—eu inda disse a um grito
Que não contive d'um momento ao cabo...
Mas, ah!... tu foste! e eu que te amava tanto...
Eu qu'inda t´amo e me debulho em pranto,
Vivo sem ti como um peru sem rabo l...
NEM TANTO...
(Off. ao Visconde)
Lauto banquete ao fim — fartos os comensaes,
Brilhava a louçania exótica dos vinhos
Pelas taças, á luz dos grandes castiçaes,
E pelo garrafal—enorme—em desalinhos...
Chegados um ao outro — intimos — bons visinhos,
Na palestra normal das fartas bacchanaes,
Conversavam a rir, bebendo aos bocadinhos,
Um padre e um forriel das tropas federaes.
—„ Padre, diz-lhe o soldado um tanto ou quanto alegre;—
Eu comi como um padre ... e é bom que eu mais me regre
No modo de comer l... Quasi que me empanturro!
— ,,Não... (diz-lhe o padre) —qual!... Eis como tu te enganas
Isso é o que pensas tu ... — voceis são uns bananas:
—Tu agora comeste apenas como um burro!... (*)
25—4—92. |
(*) Moralidade e axioma:—Como um padre, só um outro padre...
N'UM SERÃO
„ Caríssimos irmãos, bradava um santo padre,
„ — O Amor — a Crença — a Fé — o amor aos similhantes
„ E' o que ha de nos valer aos pés dá Santa-Madre,
,,E o que ha de nos salvar nos últimos instantes...
„ Não ha nada — não ha ! — que a Cristo não se quadre ;
„ Não ha mundos de Luz—Planetas Rutilantes,
,,Nem em noites de luar --cachorro que não ladre,
,,Sem dizer o Seu Nome em syllabas tonantes !..."
Disse... E, n'aquella instante um burro— por acaso,
Por artes do demonio—ou natural desáso,
Fez ouvir lá de fora um formidável urrho!
???!!!
„— Seu, padre, por favor," disseram lá dos nixos,
„ Já que vós traduzis tão bem a voz dos bichos,
„ Dizei-me então, também, o que é que disse o burro?..."
27 - 4 - 92.
Página publicada em julho de 2014
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