ANA SANTOS
Ana Santos nasceu em 1984, em Porto Alegre (RS). Graduada em Jornalismo pela UFRGS, é mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela mesma instituição, onde atua como revisora de textos.
É autora do livro de contos e prosas poéticas O que faltava ao peixe (Libretos/Fumproarte, 2011), contemplado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística, e da coletânea de poemas Móbile (Patuá, 2017).
Com o inédito Fabulário, venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2017 (categoria Poesia).
Cartografia
I – À linha do equador
Com tesoura de ferro,
cortou-se
o tecido da Terra.
Cumpres
a lei das agulhas
num silêncio rotundo.
Teu trabalho é coser.
Buscamos teus
carretéis de vento
nos armarinhos do mundo.
És matriz das coisas
consúteis: teu arremate
dispensa alinhavos.
II – Rosa dos ventos
Divergem
pontas e pétalas.
Alto-mar:
a rosa dos rumos
desnorteia-nos
com sua face de estrela.
III – Mapa-múndi
O planeta desmembra-se
em quebra-cabeça
infantil –
é preciso montá-lo,
resgatar as peças
perdidas.
Em papel e tinta,
o mundo é mais vasto,
seus seres
mais prescindíveis.
Aqui
ou na China,
os traços do mapa
contornam vazios.
IV – Longitude
A vida inteira
é quase nada.
Não verei
as auroras nos polos,
as noites luzentes
nos desertos.
Mas posso deitar
no campo, ao relento,
sonhar com florestas,
lembrar os cimos
das montanhas:
a travessia
que faço até mim.
V – O reino mineral
Quero a paz dos minerais:
pétrea,
metálica,
sem sobressalto
algum.
Mas não contarei
a história das rochas,
como não se mede
a solidez do tempo.
E sei das centelhas
nas forjas,
do azinhavre oculto
em tudo o que brilha.
Quero o sono perene
da terra:
mais que húmus,
a fria
carne de um cristal.
VI – Ao Atlântico
Teu guache anil
inunda o globo.
Como supor
a tristeza calcária,
o país de afogados?
Fosforesce no fundo
tua prole medonha.
Tudo germina
em teu solo de sal.
VII – Água doce
Fendas feitas
a lâmina,
os rios pedem passagem.
Nas cidades chuvosas,
eles saem de si:
os bolsos das crianças
se enchem de piabas.
VIII – Dinâmica
Nada de novo
debaixo do sol.
A Terra cansa de seu giro,
como a pedra
rolada por Sísifo.
Há um deus que dança,
soprando alísios, monções,
ardendo em lava,
tremendo em sismos.
Ele não para
por mim.
(Fabulário)
Dia de Todos os Pássaros
O azulão
Os azulões comunicam
nada
e, afinal, são mais comuns
do que eu pensava.
O bem-te-vi
Um bem-te-vi miúdo se equilibra
na corda bamba de um galho
em flor.
Outro, crescido, passeia,
saci
(a dor do graveto,
quebrado
por mão distraída).
De uns tantos, mortos
(o susto repetido nas calçadas),
me esqueci,
me esqueci.
O colibri
Sou tão triste
que todo colibri é uma esperança
desvairada
– de quê?
Este é o reino do acaso.
Ninguém zela por mim,
ninguém espalha
colibris por meu caminho.
O joão-de-barro
João-de-barro
bate à janela,
miçangas fitas em mim.
Ele sabe o que fiz
(gatuna de ninhos
e crisálidas):
ele sabe
e, com a garganta,
me perdoa.
O pardal
Mesmo o pardal
me traz consolo,
mesmo ele,
bicando mansamente
essas migalhas,
em meio à chusma
de seus iguais.
O sabiá
Só porque um
sabiá
achou água entre monturos
(boa o bastante
para sua sede),
só por isso recolho
álcool, fósforos,
desisto
de incendiar o mundo.
(Móbile)
Página publicada em janeiro de 2019
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