VITTO SANTOS
VITTO SANTOS nasceu em 19 de julho de 1927, no Rio de Janeiro. Bancário, advogado. Colaborou em jornais e revistas cariocas, como Diário de Notícias, Jornal do Comercio, Tribuna da Imprensa, Jornal de Letras, Leitura.
SANTOS, Vitto. O Tempo de entristecer. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1965. 75 p. 15x23 cm. " Orelha" do livro por Irapuan Rosa. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vasconcelos.
O RÉU
Não importa onde nasceu
nem a condenação do horóscopo.
Pai e mãe, todas as testemunhas do lento e rápido florescer
já não o reconhecem.
Alimentou-se de palavras e caleidoscópios,
roeu o próprio fígado,
bebeu superstição.
Chorou medo e alegria
e agora, vendo no espelho o esqueleto em casimira,
lembra em pânico: eu sou.
Um pingente, um transeunte, um taifeiro,
um meio-par, um mercador, um atleta,
um vogal, um funcionário, um juiz.
Um juiz, repetem às gargalhadas as sombras
do inferno e do purgatório.
E o réu se ruboriza.
DIÁRIO
Uma garrafa branca inventa a madrugada.
O leite é funcional. A aurora, quase inválida.
Água no rosto, escova em dentes amarelos,
barba, espelho, café, preparativos bélicos.
O dia é uma batalha inútil contra as horas,
exército feroz que coleciona glórias.
A Coréia distante, o crime no subúrbio,
hemácias no jornal, muro de anúncios fúnebres.
O homem e o seu enredo, a angústia e as suas carpas
descem no elevador até a rua amarga.
Por que flauteia a valsa errante no assobio,
adormecido o olhar, já lâmina sem fio?
Aquele carro verde é seu por um momento,
sua aquela mulher bonita, loura ao vento.
E tem a flor pousada em públicos canteiros
e tem o sempre mar, fiel mas estrangeiro.
A loura não resiste à Nota de Protesto,
nem o carro-ambição. Que flor ou mar, de resto?
Vai pisando lirismo, abandonando os cacos
da paisagem. DEPOIS é o nome do seu barco.
Alegra-se no ofício: apólices, balcão
ou varas criminais. Quem sabe, rim, pulmão?
Fazer-alguma-coisa afasta seus remorsos
de pérgulas de luz, de iates preguiçosos.
Não fosse o telefone e o vício de chama-la,
diria navegar seis horas sem escala.
O beijo sobre o beijo igual domes transato,
a luta corporal travada em mesmo quarto.
São bonecos de cera andando pela rua
até que o frio adeus divide noite e lua.
Garimpou pedra falsa e agora estremunhado
regressa com a cruz levíssima do nada.
E vem a noite, a insônia, os lamentosos sons
do bufo carrilhão das magras ilusões.
Fantasma do passado, assiste à própria morte,
porque Sancho matou o sósia Dom Quixote.
A QUINTA ESTAÇÃO
No inverno o poema, entristecido,
não vingou.
Na primavera, o poeta preferiu viver.
Veio o verão violento.
As horas do poema eram sol ou sesta ou noite sufocante.
No outono as folhas das árvores
(e as ideias)
planavam
amarelas.
As quatro estações são quatro dias,
quatro séculos de poesia em férias.
No quinto dia ele surgiu.
Era voz do céu, rosto em rosa, corpo em ânfora, olhar azul.
Era o quanto bastou para que a luz nascesse,
o poeta sorrisse e o poema, caravela mansa,
quebrasse o silêncio do horizonte.
Página publicada em abril de 2017