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THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA
Poeta e advogada nascida em São Paulo , residente no Rio de Janeiro. Livros publicados: Relógio de Sol (1980), Papel Arroz (1981), Joio & Trigo (1982), Areal (1995), Sabath (1998), Alba(2001), Chiaroscuro – Poems in the dark (2002), o pôster-poema Décima lua (1983) e Lilacs – Lilases; poems/ bilingual edition (2003). Fundou a editora Íbis Libris, ativa desde 2000.
TEXTOS EM PORTUGUÊS - TEXTS IN ENGLISH
IRREAL
a cidade avança sobre a planície.
antes tivéssemos ouvido
o canto dos rios
andado descalços
sobre as fendas
bailado
como déspotas esclarecidos.
Seremos sempre aqueles
que trazem as novas,
os que buscam
sem encontrar.
Estaremos sempre buscando
e não precisaremos encontrar nada.
17
VOLTO-ME E OLHO-ME NOVAMENTE AO ESPELHO .
Recomponho o cabelo com as mãos
e apago as marcas do rosto.
Eu fui o que fui, porque quis,
mas não preciso carregá-lo comigo.
Esquece.
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CAMINHO AO TEU LADO .
Mesmo que não me vejas,
eu caminho ao teu lado.
Passos sem som,
água sem música,
luar a deslizar sobre as florestas,
vento úmido contra paredes ruídas.
Por isso temos sido o que somos:
vastos sem termos partido,
infinitos sem abandonar nosso íntimo,
comovidos, mesmo sem encontrar as respostas.
Eu teria te respondido,
mas não me ouvias mais.
Sentei-me perto de ti
e pus minha mão sobre a tua –
tua mão fria dentro da minha.
Por trás de mim, outra tarde terminava.
Nenhum de nós saberá.
Te darei o que é teu.
O que é meu, eu não possuo.
Extraído de Lilacs – Lilases. Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2003. |
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ALTURAS
Assim como nas alturas,
disseste o que as palavras são.
O caos irrompe as manhãs,
como um trem a avançar sobre os trilhos,
e a vida que deixas para trás
clama por outro perdão
sobre vales circundados de memória.
É o corpo e sua terra,
a água longínqua a guardar os ruídos
que retorna sobre o caos de agora,
este que nos atravessa os sentidos.
14/04/2010
MELHOR
Para Leila Oli
Descem os pés ao andar das horas
a bater silentes sob o vão das portas,
passagem, ermo, paisagem, outrora.
O passado fecha as janelas do ontem.
Toda a vida é um fio prestes a se partir,
e mesmo assim não se parte,
aguardando o momento.
Em nossa memória estão todas as coisas
presentes, passadas e futuras,
sem podermos vê-las.
Abrem-se as cortinas do quarto,
e o que vemos?
Cômoda, armário, cama, quadros,
livros e roupas largadas,
numa mistura impossível de rastros.
A luz contorna os objetos e todos estão lá,
à espera do toque,
observando o passar dos dias,
a sombra e a luz,
a noite e a lua
a se lançar sobre o rosto das pessoas.
Trabalhamos incessantemente
para urgência que criamos.
Amar passa a ser escolha,
e tudo se acomoda sob o céu
das circunstâncias.
Optamos por
não ser,
não fazer,
não dizer,
não pensar.
Melhor não.
Não no lugar do sim.
Melhor.
10/12/2007
MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Lilacs = Lilases: poems – poemas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2003. 64 p. 12x21 cm. ISBN 85-89126-09-9 “Thereza Christina Rocque da Motta” Ex. bibl. Antonio Miranda
O QUE PASSA DEIXA RASTROS,
o que passa deixa marcas,
suspiros, antes de nos envolvermos
em cartas,
papéis, mantas, traços, riscos,
palavras colhidas na penumbra
de outra manhã prenunciada.
Depois retornamos aos jardins,
onde passeiam as senhoras,
as crianças,
os homens encasacados,
com seus chapéus altos e bengalas escuras,
lenços, mangas bordadas em linho,
o silêncio pairando sobre os bancos de pedra,
secando ao sol,
iluminados,
pousados no eterno.
PASSING THINGS LEAVE TRACKS
passing things leave marks,
sighs before wrapping ourselves
in letters,
sheets, blankets, Unes, traces,
words picked out in the dim
of a new anticipated morning.
Again we enter the gardens
where ladies and children
stroll,
men dressed up in coats,
wearing tall hats, holding dark canes,
handkerchiefs, embroidered linen sleeves,
the silence hovering over the stoae beaches,
drying in the sun,
enlightened,
leaning on eternity.
MOTTA, Thereza Christina Rocque de. As Liras de Marília. Fotos de Vitor Vogel. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013. 188 p. ilus. capa dura 21,5x22 cm. ISBN 978-85-7823-155-8 Design da capa e miolo: Romildo Gomes. !...no 246 aniversário de Maria Dorothea Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, e 160 anos de sua morte, em Ouro Preto, em 10 de fevereiro de 1853”. Col. Bibl. Antonio Miranda. (EE)
Um fragmento do livro:
LIRA III
Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos
Nas sãs virtudes, que no peito abrigas:
Não honras tão somente a quem premeias,
Honras a quem castigas.
TAG - Lira XXIII - Parte II
Quem são os pecadores?
Quais são os pecados
de quem somente amou?
Quem são os acusadores?
Quais são os acusados
de um crime que não se cometeu?
Quem estava de tocaia?
Quem foi o traidor?
Quem era o embuçado?
Que palavras foram ditas
para se derramar a desdita,
e arrancar de mim o meu amor?
Eu só quis minha prenda,
só ler meu poema,
só aguardar junto à porta
a tua carta florida.
Mas, ao pé do chafariz,
corria a voz do povo:
"Prendei-o!”
"Prendei o poetar
Dirceu era tão nobre,
tão amado noivo,
mas o destino quis
que ele partisse.
Corri ao pé da rainha,
supliquei ao príncipe João,
mas nem este me ouviu.
Minhas liras já tinham
corrido o mundo,
e chegaram antes de mim
aos seus ouvidos.
"É ela, é ela", diziam,
"a mulher mais bela
e mais amada do Brasil".
E a vista já turva
e o olhar perdido
me trouxeram de volta
à casa que me acolheu.
MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Joio & trigo. Poemas. Prefácio de Claudio Willer. Apresentação crítica de Olga Savary, Elaine Pauvolid e Manuel Graña Etcheverry. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2004. 88 p. 20,5x15,5 cm. ISBN 85-89126-08-0 “ Thereza Christina Rocque da Motta “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília / Ex. bibl. Salomão Sousa
GUIRLANDA
Uma tarde
é suficiente para ficar louco
Roberto Piva
I
Dedos infringem a noite,
tatuando espécie de guizos
no hemisfério.
Norte e sul cruzam-se atônitos,
bocas profanando o templo.
Languidez perpassando
o peito de sussurros,
projetando-se
no espaço redescoberto.
II
Somos tais pássaros noturnos,
vagando feito loucos.
Asas abertas,
reatando nós invisíveis.
E, transeuntes do presente,
vivemos, corpos dados,
almas dadas,
no silêncio.
CORPOS SUBMERSOS
Para Claudio Willer
Dorso arcado
bramindo no ar.
Face esculpida
mar estendido sobre corpos imersos:
Beijo em haste
cálice, corola e pétalas.
Metamorfose noturna, antigo motivo,
movimento.
Tempo, ausência, palavras.
Momento disperso, fonte alpina,
Asas perdidas em voo.
Canto de pássaro, floresta,
árvores murmurantes e dialéticas.
Negritude.
Claridão.
ALENCAR, Celso de; PAULA, João Ricardo Scortecci de; MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Papel arroz. Posfácio de Dora Ferreira da Silva, Mário García-Guillén. São Paulo: Grupo Peco – Só Poesia, 1981. 88 p. ilus.
AZIMUTE
Moldura
extravasada.
Vidraça partida
pulso cerrado.
Lume em meio-dia
difluindo a hora
em claras gotas de cristal.
Morte súbita
no dorso pálida
da antemanhã
murmurando
a insensível prece
noturna.
VERSO TORPE
Verso amargo
na boca do tempo
tragando o infinito.
Luz aguda
louca ansiedade
vertendo os sentidos.
Escuta-me a falar de mim.
Vaidade crivando ausência
deitando ao chão
tão indignas
tão estranhas palavras.
MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Sabbath e outros poemas. Rio de Janeiro, RJ: Editora Blocos, 1998. 40 p. 14x21m cm. Foto da capa: Carlos Motta. Capa: Moisés Dorado dos Santos, a partir de ideia original de Marcos Rey. Apresentação de Claudio Willer. Ex. bibl. Salomão Sousa.
“Sabbath é poesia noturna, mas não sombria, pois promove a exaltação da vida: o paganismo, o diálogo entre Eros e Logos, a corporeidade recuperada em uma natureza animada e povoada por deuses. Ao ler essa série de poemas, é impossível não lembrar a famosa afirmação de Nietzsche, de que “o cristianismo envenenou Eros e o transformou em pecado.” O erotismo como transgressão, bruxaria, a ruptura do interdito por nossa civilização, é seguido por um passo adiante, o retorno à plenitude mítico-erótica da antiguidade.” CLAUDIO WILLER.
À noite
observamos os nós das ilhargas
espaçaram-se amorosamente
A escuridão retém segredos e imagens
e nos faz imperfeitos
somente para nós mesmos
Sabbath
Para Carolina Marques
Mãos tangem alaúdes noite adentro
A manhã não tarda
Ervas maceradas na água
o líquido escuro e espesso
escorre das vasilhas
deixadas ao relento
Fogaréus ardendo no escuro
céu sem estrelas
Uivos dos lobos
entre chilreios de pássaros
anunciam o fim da noite
e todos os presságios se misturam
Não esperamos mais
Tudo passou sob a folhagem das árvores
as adagas cravadas nas raízes
testemunhando a chegada
Este é o limite
Homem algum trespassará este lugar
Com os ramos cortados, tecemos guirlandas
e coroamos os príncipes
A festa começa
A lua nova lança sua face vazia
sobre os rostos brancos
Sabbath
Um longo dia avança sobre o abismo
Nossos olhos voltados para o infinito
Sabbath
Nossas orações não fazem mais sentido
O ouro líquido escorre sobre as máscaras
preenchendo o contorno das faces
que perseguem manhãs como estas
Sabbath
Amanhecemos órfãos de nossa própria identidade
Outros seres brotam de nossos corpos
outro hálito de nossas bocas profanas
A água escorre sobre as pedras
as mãos lambuzadas de óleo
a besuntar as faces
Transgressão e violência
Crianças abandonadas
filhos da escuridão
Em vão esperamos no escuro
A tocha tremula sobre as cabeças
crepitando a lenta sonolência de farpas
Silêncio
Hóspedes do eterno
selamos nossa aliança
Morte e vida alimentadas pelas mesmas mãos
Ouvem-se os últimos cantos até o anoitecer
A noite retorna sobre a planície
e novamente os riachos correm sobre a terra arada
Afastamos fantasmas
almas que vagam ensimesmadas
entes que gravitam entre esferas circunscritas
nesse mapa aberto sobre o coração da floresta
Encerramos as arcas para as manhãs futuras
e recolhemos as pedras sob o pano púrpura
para o novo sabbath
MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Folias. Rio de Janeiro. RJ: Ibis Libris, 2014. 208 p. 12x18 cm. Projeto gráfico, diagramação e capa: Bruno Pimental Francisco. Foto da capa: Vitor Vogel. ISBN 978-85-7823-189-7 Ex. bibl. Salomão Sousa.
TANGER A HORA NUA
Para Pedro Almeida e Léo Ferreira
Tangemos hora nuas
fontes repastos rebentos
Vivemos por sermos fartos
vastos largos imensos
Tecemos por dentro a hora
antes de termos medo
Fomos tão pequenos —
primeiros entre os primeiros
Despimos assim os mitos
vértebras lápides heras
E entre palavras vivemos:
estes ermos longos e densos
10/10/2003
OUTRAS MANHÃS
Temos
nascimentos e vésperas
esperas
noturnos contornos
orvalhos diamantes
trêmulas flamas
chamas
interstícias
círculos de águas
em mais águas
profundas.
Verbos
nadadeiras de patos
em movimento.
Límpidas margens
quantas margens houver
adiante.
Descemos
bólidos rios
em travessias
e infinitos.
4/11/2002
REVERSO
Terei teu corpo
— a fina casca de teu tormento —
e terás me consumido até o último frêmito.
Te sorvo as têmporas úmidas
e estreito teus pulsos entre meus dedos
— faço-te sangrar tu desejo escarpado e íngreme.
Impregna-me com tua voz.
Deita-me em teus vazios estreitos,
tua fome cercada de segredos.
Sou tua vida.
Tua fala.
És, ao reverso,
a alma que procuro.
Tenha-me, porque sou breve.
MOTTA, Thereza Christina Rocque da. Horizontes. Rio de Janeiro. RJ: Ibis Libris, 2014. 224 p. 12x18 cm. Projeto gráfico, diagramação e capa: Bruno Pimental Francisco. Foto da capa: Necesio Tavares. ISBN 978-85-7823-190-3 Ex. bibl. Salomão Sousa.
43
Nascemos para um dia sem presságios.
nada tomba sob a árvore
e nos vemos náufragos de uma paisagem inteira.
19/02/2006
A JORNADA
Para Antônia Krapp Tavares
Enquanto vivemos à parte nas sombras
existe um moinha que gira constante
Embora não o vejamos
ele reluz à clareira na praia
com suas pás girando no ar.
Há tantas coisas que existem sem nós
flores e rios
animais que nascem e morrem
sem que saibamos.
Não saber é uma bênção e um desdém.
Não somos necessários ali.
Para que servimos senão para nossa própria vida ?
Enquanto o rio desce por suas margens
ele não vê quem o olha
e inconsciente de si e do outro
prossegue sua jornada
como se não existisse.
29/07/2011
FADO
Renascer, esta qualidade de cada manhã,
repõe a vida onde ela está.
Tu, estendido sobre a cama dos dias,
te ergues, novamente, à espera.
O mais é desvida,
teu olhar para o que está à tua volta.
Sei que cumpres teu destino,
que a nenhum outro foi dado.
Este, o fado da poesia:
havê-la enquanto se vive.
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ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA . Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Ed. Hipocampo, Fundação Rioarte, 1992. 334 p. ilus Ex. bibl. Antonio Miranda
AFRODITE
Redesenho
o sopro fácil e diurno:
dias antigos e alongados
em tua forma, hoje, de ser amado
— por que amado? e ser tão difuso
quanto a retina de teus olhos.
Meu sonho, poeta, é minha sina,
pecado mortal, pecado carnal, pecando nenhum.
POESIA SEMPRE. Minas Gerais. Número 14. Ano 9 Editor Geral: Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: MINISTÉRIO DA CULTURA / Fundação BIBLIOTECA NACIONAL, 2001. 242 ISSN 0104-0626
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
NOMEAÇÃO
Tudo tem seu nome,
o inominado,
o terrível semblante de Deus,
a letra esbelta,
a fome, a falta de vogais,
a devorar o nome ancestral.
Sou, és.
Assim está bem.
Recomecemos.
Mármara
Entre dois estreitos
um passado e outro futuro
mar que oculta outro mar adentro
buscando a outra margem
do mesmo oceano intransponível
Cidades distante abandonadas
Tiro, Éfeso, Corinto
passam sob o mesmo arco
improvável.
Cordas retêm o navio que oscila
escotilhas abertas
velas enfunadas
o mastro a cortar o céu:
tua partida ainda é um mistério.
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Página publicada e republicada em maio de 2024.
Página ampliada e republicada em julho de 2015. Ampliada em abril de 2018; ampliada em setembro de 2020
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