SÉRGIO NAZAR DAVID
Doutor em Teoria da Literatura (UFRJ, 2001), com Pós-Doutorado em Coimbra (2006). Poeta e professor de Literatura Portuguesa (UERJ). Membro do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa e do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra.
Autor de Onze moedas de chumbo (poesia, 7Letras, 2001), Freud e a religião (ensaio, Jorge Zahar, 2003), A primeira pedra (poesia, 7 Letras, 2006 - indicado ao Prêmio Portugal Telecom 2007), O século de Silvestre da Silva - Vol. I - Estudos sobre Garrett, A. P. Lopes de Mendonça, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis (ensaio, Editora Prefácio, 2007) e O século de Silvestre da Silva - Vol. II - Estudos queirosianos (ensaio, FAPERJ / 7Letras, 2007).
Organizador da edição crítica de Cartas de amor à Viscondessa da Luz (7 Letras, 2004 - Quasi Edições, 2007), de Almeida Garrett.
De
A PRIMEIRA PEDRA
Rio de Janeiro: 7Letras, 2006
IV. MÁQUINA DE ESCREVER
Hoje um poema me fez sonhar de novo
com o dia em que fui matricular-me
na escola de datilografia perto da igreja
de São José. Foi um poema que fiz
de uma pedra, a primeira que um homem
construísse, depois de terminado o mundo.
Foi dela que pude subtrair-me e ser
outra vez aquele que aprendeu tudo
na vida numa máquina de escrever.
Meu coração também é uma máquina,
embora quase não aprenda nada.
Sua responsabilidade pelo que faço
é muita. Gritem os sábios, protestem
os radares, mas é assim que é a vida:
entregar-se e esperar, como esperam
no poema todos os poemas. Não vem
do coração o gesto de abrir o vazio.
É sua entretanto a selva que guardamos
a contragosto no umbigo. Aceito este
punhal rompendo-me o estomago, sempre
a se haver comigo. Arranjo-me corno posso,
e escrevo o que sinto. Li que os amigos
faziam isto. Vomitavam primeiro
o veneno, depois a tinta e os suspiros.
IX. SYGNE
Na janela do carro
ela sirgava infernos e pátios de terra.
Riu de si mesma,
mas sonhava ainda
estalar a gargalhada
nalgum beco ou linha da mão.
Teve medo.
Viu que lembraria as noites
em que farta
bebeu tudo que vinha,
e o que ficou
foi
muito mais do que a sede.
Não bastasse a vontade de soprar uma aresta do corpo
e emprestar vida ao fungível —
que soluça e ninguém ouve —,
ha ainda
a dor sem saída,
o pressagio perto do silêncio
(recomendável nas horas em que seria preciso
morrer).
Ninguém sabe direito.
0 que se espera
é que ela não se dê por vencida.
XXIII. DEEPER
Um limite surdo e absorto
em cada aresta do corpo...
E a pergunta: até quando?
A natureza humana talvez sirva
pra suportar isto, e seja o poço,
o pântano, o lodo, o nada
que em nos dorme e se agita.
Tudo que sinto é meu e estranho
(é disto que gosto tanto).
A poesia me pôs dentro da vida.
É esta a força que fica
dentro do mundo
que ergo antes do fim.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 12. Número 18. Setembro 2004. Revista trimestral de poesia. Editor Luciano Trigo. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2004. Ilus. Ex. bibl. Antonio Miranda
Fado triste
Um português dos sete mares disse
que era preciso
saber o que era este pungir de andarilho.
A quem dar este voo
entre velas, margens, proas?
Em quem caberia este mar,
se agora os piratas
o deixam de navegar?
Um poeta velho talvez
dissesse em Lisboa tudo ama.
Esta gaivota entretanto veio
ferir-me no que quis da vida.
O que o céu nos roubou
de fundo e inteiro
vai agora neste coração
por tudo e todos contrafeito.
Não estenda a mão
nem erga os braços para amar.
A alma está presa
nas conchas, nas algas, no vestido,
na maresia, na mágoa...
Embaça-la é perde-la.
Este barco negro que o vento
afunda tem por divisa servidão,
A primeira pedra
Queria não escrever mais nenhum verso,
que não houvesse mesmo ato algum
a cometer, além das folhas em que piso
ou do nada em que amanheço.
E que depois do depois de depois
de amanhã se não mais houvesse
mundo, um homem ainda assim
amanhecesse esquecendo-se
de noite e abrindo a porta, o zimbório,
o fino vão entre as telhas
fizesse a primeira pedra.
edificando-a com nunca antes fora
pedra alguma feita: de vento, de
puro silêncio, de azeite, com as vozes
da gente que ficaram num radio,
com o medo da gente que ficou no peito
deste sobrevivente. Nós somos assim,
estamos sempre no meio, e entendam,
que há nisso qualquer mácula,
apenas destino, que se pode cortar,
seguir, bater na velha máquina Remington.
Quanta cinza, dirá o homem.
Depois de tudo a vida ainda cintila?
Inexata, rude, proterva, nascendo
quando os próprios astros se extinguem.
Página publicada em agosto de 2009; AMPLIADA em julho de 2018
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