SÉRGIO ALCIDES
Poeta, pesquisador e professor universitário, nasceu no Rio de Janeiro (1967) e reside em São Paulo. Autor dos livros de poesia: Nada a ver com a lua (Sette Letras, 1996) e O ar das cidades (Nankin, 2000). Com Ronald Polito, traduziu Poemas civis, de Joan Brossa, e Almanaque das horas e outros escritos, do mexicano Julio Torri.
TEXTOS EM PORTUGUÊS - TEXTOS EN ESPAÑOL
COMBUSTÃO
Uma cidade cercada de incêndios.
Vivemos debaixo de fuligem nesta seca.
Há muita cortesia, como se nada.
Como se as narinas não ardessem.
E os troncos acesos dessem flor.
Também agarro algum crepitar de meu.
Sob o céu amarelo, ;ob a lua roxa.
[de O Ar das Cidades]
FALTA
Maré baixa. O píer não se precipita
senão sobre o resíduo que vem dar na praia,
memória do mar, areia raiada ainda
pelas pegadas das águas em fuga, flauta
soprando invertida, para dentro de seus
pulmões: distância como concerto de sons
ausentes, renúncia da ventania, sujas
espumas abandonadas como se fossem bens,
algas e conchas entre ruínas de garrafas,
desperdício de mensagens, paus. perdidos
de suas embarcações, com desespero de pregos
em sal e ferrugem, peixe afogado no ar
descartável como os copos esvaziados, e,
lateralmente, o caranguejo flana entre
fragmentos de propaganda e etiquetas loucas.
O píer acusa o horizonte. Pendurada no canto,
a lua transparece no azul da manhã-marinha.
[de Jandira:- Revista de Literatura n. 2, 2005]
MAS
Não há corpos, não há tempo
fora desta mancha gráfica,
página estreita virando,
escrita sombra de sonho,
curva de interrogação
— num tobogã? numa foice? —
por onde desliza o carro
de quem mesmo? Faetonte?
Aquileu? Belerofonte?
Meu? Não fui eu quem botou
uma letra atrás da outra
como se fossem os dias
afiando a sua lâmina, e
preparando meu espanto
que vai dar na poesia.
[de Jandira - Revista de Literatura n. 2, 2005]
LEMBRANÇA
Está combinado: lembrei.
Mergulho numa lacuna,
escolho a forma do nado.
Meu cardume sai comigo, vermelho,
de mim, do aquário derramado
ÀS MINHAS COSTAS
As portas do metrô mastigam
o ar condicionado.
Estou em trânsito, com os demais.
Percorremos a rede incorpórea
que há de permanecer.
Não se ultrapassa a linha amarela.
Nada cheira. E a escada rolante
– áspera via – até se alegoriza
ao conduzir-nos de volta ao simulacro
passageiro das avenidas.
Na saída, ponho os óculos escuros.
Fonte: http://sapiens.ya.com/joan-navarro/alfa/alfa14/alcides.htm
LEMBRANÇA
Está combinado: lembrei.
Mergulho numa lacuna,
escolho a forma do nado.
Meu cardume sai comigo, vermelho,
de mim, do aquário derramado
na água preta do seu próprio lago
– que nos reúne.
ÀS MINHAS COSTAS
As portas do metrô mastigam
o ar condicionado.
Estou em trânsito, com os demais.
Percorremos a rede incorpórea
que há de permanecer.
Não se ultrapassa a linha amarela.
Nada cheira. E a escada rolante
– áspera via – até se alegoriza
ao conduzir-nos de volta ao simulacro
passageiro das avenidas.
Na saída, ponho os óculos escuros.
Fonte: http://sapiens.ya.com/joan-navarro/alfa/alfa14/alcides.htm
ALCIDES, Sérgio. O ar das cidades. Poemas (1996-2000) São Paulo: Nankin Editorial, 2000. 70 p. (Coleção Janela do Caos – poesia brasileira) 12x18 cm. Concepção da capa: Adolfo Montejo Navas e Sérgio Alcides. Foto da capa: Alexander Rodchenko. ISBN 85-86372-24-2 Col. A.M.
Como a fundação da lírica urbana faz parte do estabelecimento da poesia moderna, 0 ar das cidades, de Sérgio Alcides, continua um pathos lírico que tem no próprio Brasil valores importantes (Sebastião Uchoa Leite e Armando Freitas Filho são dois exemplos), perpassando todo um século de experiências. Apesar de o livro estar dividido em três partes, o fio da memória costura o volume. ADOLFO MONTEJO NAVAS
MAQUINARIA
Levanto o tapa-olho
para melhor espiar
os sete mares do quarto.
En garde!
Em dia de recordação
também tem espetáculo.
Range
porque o cordame
aguenta mal
a volta do velho cenário.
Reapresentando: a récita inédita.
Mas não arrebenta.
VOLTA AO CORAÇÃO
Vem o sangue
nadando a montante.
Não é o passado que retorna
e me percorre o corpo a cada poro:
sou eu mesmo
presente / ausente
que não tenho onde escorar
e coro
desamarrado no tempo
jamais devolvido a mim.
ALCIDES, Sérgio. Pier. São Paulo: Editora 34, 2012. 136 p. 12x18 cm Fotografia da capa: Krisatin Capp. ISBN 978-85-7326-498-2Livro publicado com o apoio do Programa Petrobrás Cultural. Col. Bibl. Antonio Miranda.
“Sérgio Alcides revigora a poesia atual ao fundir em versos de rara beleza referências literárias, filosóficas e históricas com um sensibilidade aguda para os desafios existenciais, que são de todos os tempos, e para as marcas de uma vida, que transcorre em terras, mares e cidades, que são de agora.” NEWTON BIGNOTTO
FALTA
Maré baixa. O píer não se precipita
senão sobre o resíduo que vem dar na praia,
memória do mar, areia raiada ainda
pelas pegadas das águas em fuga, flauta
soprando invertida, para dentro de seus
pulmões: distância como concerto de sons
ausentes, renúncia da ventania, sujas
espumas abandonadas como se fossem bens,
algas e conchas entre ruínas de garrafas,
desperdício de mensagens, paus perdidos
de suas embarcações, com desespero de pregos
em sal e ferrugem, peixe afogado no ar
descartável como os copos esvaziados, e,
lateralmente, o caranguejo flana entre
fragmentos de propaganda e etiquetas loucas.
O píer acusa o horizonte. Pendurada no canto,
a lua transparece no azul da manhã-marinha.
TEXTOS EN ESPAÑOL
Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil. Ex. bibl. Antonio Miranda
ALENTO
O óleo da alma distribui-se além dos poros
(sopro na lama)
Não sei se não caibo ou se sobro.
ALIENTO
El aceite del alma se distribuye más allá de los poros
(soplo en el barro)
no sé si no quepo o si sobro.
(De Nada a ver com a lua (1996))
*
ESTATUETA
Encontro o cavalo em pedaços
na calçada. Monto.
Pó de mármore. Memória
só tem nobreza quando, rompida,
não serve mais de ornamento.
Faço disto um cavalo de batalha.
Cavalgo em pedaços
para várias direções, recolho
os dias, os quartos, os troncos
Tudo sujo do chão presente.
ESTATUILLA
Encuentro el caballo en pedazos
en la acera. Monto.
Polvo de mármol. Memoria
sólo tiene nobleza cuando, rota,
no sirve más de ornamento.
Hago de eso un caballo de batalla.
Cabalgo en pedazos
hacia varias direcciones, recojo
los días, los cuartos, los troncos
todo sucio del suelo presente.
(De O ar das cidades (2000))
19 CASTANHEIRAS MORTAS
Sobre os monumentos às vítimas do massacre
Eldorado dos Carajás
Não dão castanhas
como o tronco morto de fuzil dá balas.
Mas dão posse de terra:
se não invadirmos o passado
como diremos que é nosso?
A fazenda movediça, o pasto do vento,
onde cresce a erva do dano...
Eldorado? Um dia, talvez, dos Carajás.
Daí que não dão sombra, estão ali
só para arrepiar a paisagem.
Não dão sossego ao solo onde estão
os troncos enterrados.
19 CASTAÑOS MUERTOS
Sobre el monumento a las víctimas de la masacre
de Eldorado de los Carajás*
No dan castanhas
como el tronco muerto de fusil da balas.
Pero dan posesión de tierra:
¿si no invadimos el passado
cómo diremos que es nuestro?
La finca movediza, el pasto del viento,
donde crece la hierba del daño...
¿El Dorado? Un día, quizás, de los Carajás.
De ahí que no dan sombra, están allí
sólso para erizar el paisaje.
No dan sosiego al suelo donde están
los troncos enterrados.
(De O ar das cidades (2000))
*Eldorado dos Carajás se hizo tristemente célebre por la matanza
de los sin tierra, manos de la policía militar el 19 de abril de 1996.
*
VODÚ
Me espete aqui:
o poro da folha não é meu, mas eu sinto.
A reta da tinta não desalinha
o itinerário na palma da mão
(onde me perco, mais que na vida)
nem o rosto desse esforço
com olhos de contas e boca de feltro
é máscara rebelada do que fui ou fujo
de ser. Está livre de mim, o poema.
Eu, não, dele, de mim, do seu chumaço
e arame, do seu engenho e arte.
Me espeto aqui, se espete.
VUDÚ
Me pincha aqui:
el poro de la hoja no es mío, pero yo lo siento.
La recta de la tinta no desordena
el itinerário en la palma de la mano
(donde me pierdo más que en la vida)
ni es rostro de este esfuerzo
con ojos de vidrio y boca de fieltro
es máscara rebelada de lo que fuí o huyo
de ser. Está libre de mi, el poema.
Yo, no, de él, de mí, de su estofa
y alambre, de su ingenio y arte.
Me pincho aqui, se pincha.
(De O ar das cidades (2000))
Página publicada em dezembro de 2018
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