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ZENILTON GAYOSO
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O poeta e ensaísta Pádua Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, em 1971. O primeiro livro que publicou, O palco e o mundo (Lisboa: & etc/Edições Culturais do Subterrâneo, 2002), desenvolve, em suas entrelinhas, um pensamento antropofágico. O segundo, Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), tem um tom maior de contestação social. Torna-se imprescindível, a partir disso, destacar a dedicatória de seu livro de estreia, em que o autor ignora a ‘escola poética’ Desvairismo, criada por Mário de Andrade em seu “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e se diz a favor do inconformismo, com letra minúscula. Movimento semelhante se dá em relação à uma possível tradição na qual o livro se insere. Pádua Fernandes utiliza um hibridismo entre prosa e poesia que se insere em uma linhagem de autores que tentaram, pelo menos de forma mais visível, esse caminho. Para não falarmos nos conhecidos clássicos (franceses, sobretudo, a exemplo de Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire), só aqui no Brasil teríamos, nesse campo, os exemplos de Oswald, Guimarães, Haroldo de Campos, Leminski e Hilda Hilst, destacando-se Fluxo-floema. O palco e o mundo possui um ritmo controlado, mas, ao mesmo tempo, foge ao convencional. Seu trabalho possui um “domínio de pensamento sobre as palavras”, característica que Octavio Paz, em O arco e a lira, vislumbra na prosa. Em seu segundo livro, Pádua procura um diálogo mais forte com o universo contemporâneo, com todos os seus problemas, mas sem esquecer de um discurso enviesado. Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/
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FERNANDES, Pádua. Código negro. Desterro [Florianópolis], SC: Cultura e Barbárie, 2013. 60 p. 13x19 cm. Capa: Fabio Weintraub. ISBN 978-85-63003-09-6 “ Pádua Fernandes “ Ex. na bibl. Antonio Miranda.
SIGNO DA ANATOMIA
existe um coração na pele;
não é a dor,
mas como a dor no sangue ferve,
no corpo o obriga ao labirinto,
sob a pele o cárcere infindo
menos se a fere;
há uma víscera nos olhos;
não é a dor,
imita a dor em seus esforços
de não ver exceto o profundo
nada que descortina o mundo
até os ossos;
um osso rói o coração;
não é a dor,
com a dor divide esse pão,
lixo expulso da lata e fora
do esgoto e nem mesmo o devora
faminto cão;
existe uma pele no sangue;
não é a dor,
desnuda a dor a todo instante
em que recobre a cicatriz
de haver um coração, matriz
do frio cortante;
sexos vários pulsam, no sexo;
não é a dor,
por certo, que os une em perverso
idílio entre ânsia e vazio,
máscara e signo ou, em equívoco,
une-os por verso;
quantos haveres, e quão ricos,
não é a dor
quem os guardará assim vivos
do nada que aos corpos agrega
outros corpos em posse cega
e já perdidos.
Não é a dor
a palavra dita no corpo
que é a dor.
GARGANTA E CIDADE
Reengenharia da fome: o céu reflete-se nos
urubus que descem e comunicam aos citadinos
a lição do voo - a voracidade; a terra
consubstancia-se nos
urubus que se elevam, fartos da carniça,
após erigirem com
ossos um novo templo para o sol.
Memorando sobre a verdade: o sol dança com palafitas
à beira das políticas de regularização fundiária
apontando no horizonte
a linha em que viverão juntos.
Gestão industrial da catástrofe: para o prefeito do possível
governar significa construir rampas
que acelerem o caminho da cidade para o abismo.
Consenso da merda com a teoria da administração: vereadores
venéreos
em férias remuneradas nos paraísos artificiais
com que as empreiteiras substituíram a política.
Assim você, funcionário, trabalha e grita
ninguém sabe o que se passa em minha alma,
exceto o açúcar, a direção perigosa, o cigarro,
a mentira, fastio
jamais descrito? Nada disso
revela por que você se mata.
ANTOLOGIA PATUÁ 10 ANOS + Patuscada/ Vários autores. Editor Eduardo Lacerda. Capa de Leonardo Mathias. São Paulo: Editora Patuá, 2021.; 288 p. 13,5 x 21 cm.
ISBN 978-65-5864-191-9 Ex. bibl. Salomão Sousa
Infecção à beira-mar
tiroteio por bananas na feira;
já era confusão suficiente,
mas subitamente desce o helicóptero
e os ocupantes levam todas as frutas;
os compradores e as armas terrestre calam-se
salvo o cão,
que late para o roubo armado com hélices;
suas quatro patas não intimidaram;
os seres humanos não podem contar
com veículos tão eficientes,
mas somente som um sistema de transporte planejado
a partir do número de aulas de esqui
dos herdeiros durante o verão do hemisfério sul;
um sistema de transportes que atende
ao número de garrafas
que os ministro dos tribunais superiores
derramarão durante o casamento de herdeiros;
um sistema de transportes para a sustentabilidade
dos herdeiros
que ainda não nasceram
mas todo planejamento urbano
é voltado para que eles nunca tenham que usá-lo;
assim as instituições funcionam normalmente
e preparam a terra para as gerações futuras
cobrirem-se de plástico após o aquecimento global;
“não há verdades nem corpos,
mas se houvesse uma verdade no corpo
seria a infecção”
dirão as instituições do alto de prédios ou helicópteros
vendo a inundação a que chamam cidade
e rezarão;
nesta infecção a que chama cidade
retoma-se o cristianismo original,
o dos soldados que pregavam
à cruz mortos futuros,
escrevendo na pele
o evangelho da chibata;
as chibatas competem pelo mercado de corpos
a que chamam cidade,
giram como hélices, batem uma na outra;
cai o helicóptero;
como chegarão as bananas
para a festa de casamento dos herdeiros?
se as recuperassem agora ao menos já estariam flambadas;
“dá para ver um incêndio ali”,
“mas esta cidade é tão linda que até os incêndios lhe caem bem,
combinam com o poente”,
“com binóculo dá para ver que a cidade é bonita”,
“e aquele ponto se movendo, ministro?”
“é só um cão andando no caminho para a mansão”,
“bom alvo, tenho que chamar o pastor,
a cerimônia não começou
e ele vive dizendo que atira melhor que eu”
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página publicada em dezembro de 2021
Página publicada em agosto de 2014
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