OCTÁVIO MORA
(1933-2012)
Poeta nascido na Argentina e radicado no Brasil, participou da Geração de 1945 da poesia brasileira.
Aposentou-se como professor titular de Literatura n UFRJ. Estreou em poesia com o livro Ausência viva (1956). Depois publicou Terra imóvel (1959). A esses se seguiram Corpo habitável (1967), Pulso horário (1968), Saldo prévio (1968) e Exílio urbano (1975). Também formado em Medicina, exerceu durante alguns anos a profissão de médico.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
ULISSES
Porque volvió sin regresar Ulises
M. A. Asturias
Ulisses em Ítaca, vivo ausente
Talvez seja resíduo da viagem,
mas é tão pouco minha esta paisagem
que só posso estar longe desta gente:
Se foi minha, coraram-na tão rente
que a memória mudou toda a folhagem —
falávamos idêntica linguagem —
Falo agora linguagem diferente:
Vivo em Ítaca ausente: minha fronte
alargou-se, meus olhos são maiores,
e na memória trago outros países:
Contudo, já foi meu este horizonte,
já fui jovem aqui: olho arredores,
e vejo Ítaca ao longe, sem raízes.
EM SAQUAREMA
(i.m. Walmir Ayala)
Cemitérios onde os rastos
não são os de humanos pés
mas os de humanas marés
de ressecas e ombros gastos
Os cemitérios tão junto
do mar que do céu defronte
ao deitar-se no horizonte
são do próprio sol defunto
Cemitérios do convívio
com os elementos soltos
os mortos no chão revoltos
mediterrâneos de alívio
Os cemitérios que banha
o mar sem mármores rente
de costas todas de frente
numa encosta de montanha
Cemitérios ou são arcos
de círculos que recordam
os horizontes e abordam
a terra a bordo de barcos
Os cemitérios que olham
para o mar cujo azul frio
cujas ondas só um vazio
preenchem e não o molham
Cemitérios sob os astros
sobre as ondas oscilantes
cujas campas flutuantes
cujas cruzes foram mastros
Os cemitérios que o sul
contemplam em vez do norte
as águas secas da morte
separando o céu do azul
Cemitérios hoje portos
para onde afinal desterram
morrendo os que em vida erram
errantes depois de mortos
Os cemitérios que o vento
atravessa entre destroços
já nus descarnados ossos
sem fôlego ou comprimento
Cemitérios com veleiros
em vez de túmulos Velas
de barcos não de capelas
cemitérios marinheiros.
SEMPRE EVA
Mordendo, ao modo de quem come,
a polpa escuras das maçãs,
as noites, tardes e manhãs
umas nas outras, como a fome.
Partes as frutas com os dentes
e encontras, sob a casca, a cor
verdadeira de seu sabor
íntimo. Açúcar som sementes.
Pelas sementes, mais
ou seu sabor ácido, a planta
cresce-te dentro da garganta
até os pés.Dizes-te: escuto.
Inseparável das raízes
faz-se o silêncio sem escolha
que reproduz, folha por folha,
árvore audível, o que dizes.
Macias, as palavras, dentro
das frases, ásperas, mastigas
e a tua própria voz obrigas,
maçã, ao silêncio de seu centro.
Calas? Para que não transbordes
do teu silêncio e se descubra
o quanto és doce, a polpa rubra,
sempre, do próprio lábio mordes.
Extraídos de 41 POETAS DO RIO, org. Moacyr Félix. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998. 514 p.
CERCO
Imponho-lhe o cerrado cerco
dos que estão presos, muito mais
às suas sombras que a reais
presenças. Mas o fio perco.
Entre meus braços, a corpórea
lembrança da mulher que tenho
presa, perde-se: só um desenho
deixa o seu rosto na memória.
Sobrepõe-se a tudo que, solto
no espaço, a custo recomponho
lado a lado: do sono o sonho,
do ar, seu cabelo revolto.
Ergue-se com o vento. Acima
da terra, sente-se-lhe a falta
de horizontes visíveis, alta:
montanha sem céu que a redima.
Oculta-me ainda que, entre
estes braços, meus e seus, fuja
à própria existência, em cuja
escuridão, volto a seu ventre.
Mostro-lhe pássaros. Conforme,
porém, a imagem que a repete
será seu rosto. O olhar reflete,
assim, só o sono de quem dorme.
Recordo-a. Pelo ar de abandono
com que à memória atem-se, o medo
expandir vê-se-lhe. E, em segredo,
prendo-a, por dentro, como o sono.
FACAS
Também o vento, posto
que de cortante frio,
sobre um perfil de rosto
pode perder o fio.
Mas às facas compete,
sob um fogo sem lume,
da luz que se reflete
redescobrir o gume.
Guardadas em bainhas
sem fundo, até o punho,
estendem retas linhas
de força e testemunho.
Mesmo as que já não servem,.
de lâminas opacas,
a custo, porque fervem
na mão, esfriam. Facas.
Penetrantes algumas,
cortantes todas. Quais
são outras e quais umas?
Relâmpagos: iguais.
Reconheço, no brilho
das lâminas, o talho
que deixam. Domicílio
sanguíneo, sim, do orvalho.
Longas, nos intestinos
de frio é que se inserem
porque são seus destinos
um só. A treva ferem.
Digo-me tudo quanto penso.
Por sob o silêncio (na falta
de palavras) penso em voz alta.
Ouço-me. Mas não me convenço.
Estou nas árvores. Assim
vivos e mortos, indistintos,
lado a lado, unidos. Sucintos
sob o silêncio: esse outro fim.
FUGA
O vento está no ar. Enquanto
as grandes árvores abraçam
a permanência, os ventos passam.
Inseparáveis pelo pranto.
Ventos e árvores. A exemplo
daquele que, no desconforto
da terra, entrega os pontos, morto,
deixo de ver: tão-só contemplo.
Basta segui-las. Os seus ramos
retorcidos (simples tormentos)
crescem na direção dos ventos
que sopraram para onde vamos.
Passo por sombras que conheço.
Troncos vazios que a madeira
abandonou, deixando inteira
a casca, áspera, pelo avesso.
O solo foge-nos. Não pises
fora de tua sombra, ainda
que seja noite: a luz, advinda
de Deus deixar-te-á sem raízes.
Digo-me tudo quanto penso.
Por sob o silêncio (na falta
de palavras) penso em voz alta.
Ouço-me. Mas não me convenço.
Estou nas árvores. Assim
vivos e mortos, indistintos,
lado a lado, unidos. Sucintos
sob o silêncio: esse outro fim.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducción de Gabriel Rodríguez
IFIGENIA
Como estatua de viento, piedra gastada.
Sopla Ifigenia siempre en la memoria
y estamos en ella sin escapatoria
como el tiempo en las piedras: solo apartada
(debido a la semejanza —con el viento—
de su todo) para estar en nosotros, aerea,
desprovista de contornos, en materia
capaz de dar volumen al pensamiento
que surge de lo que desaparece: cuando de vuelta
vuelve llena de pájaros y todo
se le pega a la mirada: reminiscencia
de sus pasos, el pajaro se suelta
y gravita en nosotros la tierra: contenido
y volumen final de su ausencia.
(Ausencia viva)
DONDE EL MAR FALTA
Entreabiertas las piernas, y posada
apenas, sobre los hombros, la cabeza
parecías, a veces, derramada
en el fondo, mas espesa.
Y eras líquida: veías, a través
de tu propia sombra transparente
la luminosidad de tus pies
alados. Por estar ausente.
Jamás decias nada. Siempre tenías
entre los labios, la voz silenciosa
de los que vuelven. Ola tras ola, venías
(y vienes) misteriosa
Desde la profundidad del mar. Brusco
en sus reacciones, donde el mar falta
bajo las olas, ahi, ahí te busco
y eres, como las olas, alta.
Cuando miro el horizonte: cuando todo
se disuelve en sí mismo y ola tras
ola, me callo. Veo, y estoy mudo,
El mar en tu voz.
Porque veias el mar (tenías el mar
en la mirada) al cerrar los ojos. Y de frente
lo veíamos surgir. Bastaba mirar,
que todo era horizonte.
CONOCIMIENTO COMPLICE
Muestras el vientre: oculto
entre los muslos unidos tienes el sexo:
los separo con los ojos,
altas columnas:
en el intersticio recóndito demoro
la mirada: a la espera.
La sombra, faïda ultima,
dejas caer, vacfa ya, a tus pies.
El cuerpo, su sólida desnudez
deja que el pubis
sobresalga en su centro: oscuro pórtico.
Desvistes el pudor.
Ofreces, son frutos,
tus pesados senos. Casi ciega,
cierras los ojos, pródiga:
un placer único
toda (en el instante líquido de la posesión)
das y recibes.
Receptáculo fúlgido.
La soledad del amor después de la entrega
lo prolonga: carne y huesos
son uno solo. Útero
o mutua soledad amante: el suelo.
Ninguna prisa.
La mínima repulsa
Permaneces desvestida detrás de las tinieblas.
La mirada fuerza las tinieblas:
suave estupro.
Se funden visión y tacto, después
retina y piel.
AMBOS PRIMORDIALES
La sed, espectro del agua
Así, del propio sueño la forma humana
antes del cuerpo.
Bocas sin labios
la soledad del cuerpo pasa a la sombra
y lo acompaña.
Terrestre, la imagen humana
femenina, se repite en montañas
Rios: de los hombros
le caen los brazos.
El paisaje que se yergue en el horizonte
lineal, danza.
Paisaje curvilíneo
ajustado a la erosión de sus caderas.
Justo, el contorno
en libertad
la deja: moverse, presa en sus hormonas,
puede y el cielo gana.
Así sus nalgas
bajo la epidermis justa que la luz moldea
al andar, suelta.
Se sabe grávida
al palparse, húmeda de sueño
bajo otras manos.
Nacida y tan sin párpados
cierra los ojos solo cuando ama.
Esconde el rostro
(máscara caída)
libre pero presa en la soledad del hombre
Son uno solo: ambos.
(Corpo Habitável)
Extraído de ANTOLOGÍA DE POESÍA BRASILEÑA. Preparación, traducción y prólogo Gabriel Rodríguez. Caracas: Fundación Editorial El Perro y la Rana, 2008. 437 p. (Colección Poesía Del Mundo. Serie Antologías)
NÓS POETAS DE 33. Organizador: Joanyr de Oliveira. Brasília, DF: Theaurus, 2015. 210 p. ISBN 978-85-409-364-7
CASA MORTA
A casa estava atrás de cada porta.
As paredes espessas eram brancas
e de pedra. De ferro eram as trancas
com que o tempo, a sós na casa morta
trancara-se por dentro. O assoalho
de madeira sonora nos transporta
por longos corredores. Grande aorta
comum aos que viveram e sumiram
a morte vem em busca de agasalho.
Idênticos os mortos, semelhantes,
passeiam pela casa. Por dentro
parece que maior a construíram.
A casa ficou tal como era dantes —
mas me sinto de fora quando entro.
BIOGRAFIA
Sou aquele a quem busco:
jamais encontrei a minha sombra.
A noite me acompanha
e seu que luto
com a treva. Combato: sangue a sangue
e corpo a corpo.
Rios sob o meu pulso
escampam ao destino atroz do sono:
durmo com a lembrança
de minha fuga
e o sólido vazio das montanhas.
Sem horizontes.
Avanço com a angustia
prévia: a visão do derradeiro encontro.
Reconheço que canso.
Porque sou surdo:
só ouço a minha voz quando alguém chama
alguém que é outro.
Reconheço um segundo:
crio logo raízes e sou tronco
sem nenhuma esperança.
Espero tudo
e não espero nada que não ganhe
outro contorno.
Sou aquele que do húmus
liberta os pés e as pernas sem esforço
até saber que anda
imóvel. Fundas
são minhas mãos e afundam por instantes.
Encolho os ombros.
(Antologia da poesia brasileira contemporânea)
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Página ampliada e republicada em março de 2023. Página ampliada e republicada em agosto de 2009; ampliada e republicada em setembro de 2014.
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