MERCIA PESSÔA
Mercia Pessôa nasceu e mora no Rio de Janeiro. Poeta, é autora de Súrnia, (1996), Zoa (2016) e Augusta (2019). Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, com o tema “ Veredas Fáusticas da Narrativa: Almas Mortas e Grande Sertão” (2005), Mestre em Poética (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ com a dissertação “Misoginias Poéticas? A fragmentação do gênero em Gógol “(1998), é especialista em língua e literatura russa (1990).
(do livro: Súrnia. Rio de Janeiro: 7Letras, 1996.)
Uma mulher e sua quarta-feira de cinzas
Tenho febre de lebre, anoiteço
Quase sem cor. De cor: “As horas
Que contém a forma
Na casa do sonho transcorreram”
Já não há mais rima para quedo
Que não seja medo
E talvez
Não haja conteúdo tampouco
O verso tornou-se um hiato
Entre o aposto e a eterna aposta
Seu reverso – uma partilha
Sem ponto final
E o que me resta jogar? Senão refutar
As palavras em perdas e ganhos. Para depois
Sorrir, sem fazer carnaval, demonstrando
O corpo e os dentes
Ao etéreo namorado
Meus olhos se enchem de lágrimas
Tudo se turva em recusas escuras
Mário de Andrade
Em verdade
Tu nada disseste. Apenas
Adeus, numa atonia sem Deus. Em silêncio
Saías, depois de beijos de lua cheia. Quando
Era dia e quase tudo precipitava-se pela monotonia
Do adeus, tão desprovido de paisagem
Ele tende a ser ardente, mas está fadado a ser breve
E logo eu, que jamais concedera uma alegoria
Assim, já numa urgência de mim
Por três vezes, adeus respondi
(do livro: Zoa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.)
Difícil saber
Onde estão
As pontas. Alinhá-las
Uma a uma. Desfazer
Os emaranhados. Vez
Que um nó
Atravessou a trama
E não houve
Desenlace. Posto
Cem vezes ou mais
Verbessern
Outro verbo
Outra língua
Era o chão, a lamber
Eram os gatos, ciscados
Nos ouvidos, aves
Eriçadas, as penas
E os gatos aos pares
Patas, garras
E grunhidos notívagos
O medo que atravessa a noite
Como se aos pântanos fosse
E somente aos pântanos, quase grito
Não importa a forma
Bruscas, as mãos
Não alcançam os nós
Tangenciam vieses. Um esforço
De demasiada vigília apenas
E o continuum
Não se sabe
Se a fio, ele irá partir
E logo romper
O que é só
O esgarçamento
Da palavra
Em seu lugar
Zoa
(do livro: Augusta. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.)
Porque as páginas em papel
Têm um final. Virá-las
Já não é o mesmo que segui-las
Me adianto
Em letras, palavras
E números
Não é um início
Era para ser a metade
Minha metade
São três
Horas contínuas
Continuadas
E o porquê da repetição
Não me satisfaz. Falta uma
Razão. E todas
As vezes
Que digo sim
Quero fugir
Da moça franzina
A devorar uma maçã
Vermelha
Com os dentes afiados
Em certo desejo
Devoluto
Quero fugir
Da mulher
De laço
Cor de rosa
Tatuado na panturrilha
Replicado
Em miniaturas
Na estampa da saia
Nos detalhes dos sapatos
E dos óculos
E mais
Do marido de aluguel
Que realiza pequenas
Reformas domésticas
Quero fugir
Dos homens das esfihas
Espalhados pela cidade
E tantos outros
Que vão
Das algazarras
Às rodas de jogo
Não era
Nenhuma das leis de Newton
Nenhum dos anjos caídos
Era como não dormir
E depois abrir as janelas
Rever
O casal
A trocar promessas
Em despedida
Em meio a entrada do passadiço
Entre a Sede da General Severiano
E o Rio Sul
Com os transeuntes a desviar
Dos amantes
Como se ali
Não houvesse
Eles
Como um obstáculo
Ah! O amor
A estrela solitária
O previsível
Sol
É preciso persistir
Mas também saber
Abandonar
Coloco
As minhas mãos
Sobre as suas. Temerária
Que sou, prolongo as horas
Afora isso, quase enlouqueci
Contando os números
As inúmeras vezes
Que não vou dizer
O seu nome
Ainda ontem
Era só uma madrugada fria
Hoje são as rolinhas
Enfileiradas, ora quietas
Ora agitadas
Lado a lado
Posso contá-las
Uma a uma
Duas, três vezes
Quatro, cinco, seis
Multiplicadas as sequências
Há um movimento
De bater de asas. E logo elas
Se precipitam
As andorinhas
A voar
E eu me refaço
Naquela manhã
Augusta
Aos olhos
De bem querer
O vinho
A dança
A Zorba
Grécia
Como não voltar
A Atenas, Mykonos
Santorine
Ao estado
De embriaguez
E tez
De flor amarela
Mar de Egeu
As pequenas coisas
Existem, estão por aí
Sobre uma tigela leve
O dispor de pães
A xícara de café
Solúvel
As sobras
Espalham-se pelas beiradas
Há dias não saio de casa
Existe uma camada grossa
Que convida ao risco
Aos movimentos aleatórios
Que desfazem
O extenso acúmulo das partículas
Em estado de repouso e pó
E sobre as prateleiras
Livros em desalinho
Envelhecidos
Esquecidos
A leitura
Não satisfaz
Quero sair
E me volto
À feira livre
Às primeiras sensações
Do dia
Ao aforismo
Do ritmo pulsante
Moça bonita não paga
Mas também não leva
Página publicada em agosto de 2020
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