MAURICIO MATOS
Mauricio Matos (Rio de Janeiro, 1973). Jornalista, poeta, ensaísta. Tem poemas e ensaios publicados em periódicos especializados no Brasil e em Portugal. Professor Universitário de Literatura e Comunicação, é doutor em Literatura Portuguesa.
MATOS, Mauricio. Aquém das retinas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. 78 p. 13x19,5 cm. ISBN 85-7577-296-1 “ Mauricio Matos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
CARNAVAL
um lado insólito outro lado químico
um lado místico outro lado ácido
um lado atómico outro lado esfíngico
um lado físico outro lado extático
um lado lírico outro lado histórico
um lado crítico outro lado mágico
o carnaval é como um transe lógico
e a quarta-feira o seu reflexo trágico
tíbias cérebros crânios rádios e úmeros
braços pernas sem dono e sem sentido
por quatro dias no alegrar-se inúmeros
em cada gesto o extravasar contido
RECANTO DE LUIZA [NETO JORGE]
a Jorge Fernandes da Silveira.
por dentro das mulheres todo o fruto
em sexo boca reto corpo e face
talvez relampejasse absoluto
enquanto sobretudo contivesse
o menstruo escondido num reduto
aonde em teoria o mar chegasse
ÚTERO
por sobre os pássaros talvez a obesidade
dos pensamentos enferruje o eterno escudo,
abismo vivo em cujo ventre moribundo
descansam bichos n O jardim dos sempre tarde
só quando o nada revelar-se mais que tudo
virão as grades prometendo liberdade,
e em profecias reveladas parte a parte
um novo deus recriará o mesmo mundo
POESIA SEMPRE. ANO 8 . NÚMERO 13 – DEZEMBRO 2000. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2000. ISBN85-901646-1-6 Editor Executivo Ivan Junqueira. Ex. bib. Antonio Miranda.
Acerca da inscrição de Camilo Pessanha
perdeu-se a luz como um lugar em mim
a minha alma é simples e pequena
ó quem pudesse perceber o fim
e rir de tudo como faz a hiena
O claudicante
Eu sou a parte de alguém que caminha
as pernas tortas de pensarem tanto
são pernas minhas sobre as quais eu me levanto
que eu sou a via todavia minha
eu sou o rastro de mim mesmo, triste
o claudicante que caminha e nunca dorme
os pés cansados como os pés de quem persiste
o microcosmo de um pedestre enorme
eu sou o todo esfacelado em muita gente
e todo o mundo em mim refigurado
é claudicante e o meu olhar, meio doente
passei as horas desta tarde ensimesmado
e meio triste e meio indiferente
fiz de propósito um soneto, todo errado
Alexandrino agalopado ao limite do mar
Caminhar, caminhar, sobre os rios que vão...
sermos todos iguais, braços dados ou não...
dizem versos antigos e um outro Vadré;
caminhar todavia depende da fé,
ser cavalo-de-tudo, e fazer procissão.
Caminhar, caminhar, afinal, caminhar,
desavir-se consigo e consigo ainda estar
marejando na pedra o caminho do sal,
lapidando seus pés, como fosse um jogral
a fazer ekiphrasis na beira do mar.
Caminhar, caminhar, de outros tempos virão
conhecer-se em percursos os homens de então;
e, correndo perigo, demônios até
pelas praias verá, se for alta a maré,
quem do mar, em si mesmo, tiver precisão.
Caminhar, afinal, caminhar, caminhar,
caminhando compor de sentido um lugar,
matemático e métrico, igual por igual,
onde os pés vão dispostos no mesmo areal,
onde a mente é longínqua, na beira do mar.
Caminhar, caminhar, nos propõe a canção
e haja pé calejado em profundo sertão,
que na beira do mar, o caminho não é
nem o indício de um outro lugar, onde um pé
o horizonte percorre, em verdade ou em vão.
Afinal, caminhar, caminhar, caminhar...
pela praia infinita e final, par a par;
decidir pela vida, entre o bem e o mal:
longilínea a ideia, em lugar abissal,
verossímeis os pés, no limite do mar.
Página publicada em julho de 2014. Página ampliada e republicada em maio de 2018
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